Dark kitchens e o que há do outro lado das cozinhas de delivery
Mau cheiro, acúmulo de lixo e barulho são algumas das reclamações de moradores próximos a essas cozinhas industriais
Mau cheiro, acúmulo de lixo e barulho são algumas das reclamações de moradores próximos a essas cozinhas industriais
Sair para jantar é uma prática que perdeu espaço para os aplicativos de delivery justamente com o distanciamento social causado pela pandemia. Nesse período, diversos estabelecimentos tiveram que alterar o modelo de negócio para continuar atendendo o público. Como muitas das vezes não sabemos detalhes sobre a localização dos restaurantes, é provável que você já tenha feito algum pedido em uma chamada dark kitchen.
Por um lado, o modelo traz benefícios para o empreendedor que precisa diminuir custos. Por outro, sem a fiscalização necessária, pode oferecer sérios riscos para a população de uma região. Visitamos uma unidade da Kitchen Central, reunimos relatos e conversamos com uma especialista para entender como esse novo tipo de empreendimento se encaixa nas grandes cidades.
Também conhecida como ghost e cloud kitchen, o nome é dado a cozinhas montadas em galpões dedicados exclusivamente a entregas, sem identificação na fachada, muito menos serviço no local.
Isso já existia em locais menores, porém, foi com a pandemia que o modelo se desenvolveu e passou a chamar a atenção de novos investidores. Assim, startups com esse objetivo surgiram, e galpões de porte industrial passaram a ser oferecidos a microempreendedores.
Esse é o caso da Kitchen Central e da Mimic, que se fundiu com a Garden Brands para criar uma holding alimentícia chamada Eatopia.
Restaurantes que antes fechariam as portas encontraram uma saída para continuar em funcionamento com custos menores. Entretanto, alguns problemas começaram a aparecer.
Os galpões de uma dark kitchen são instalados em bairros residenciais para facilitar a entrega dos pedidos. Por conta dessa proximidade com os centros urbanos, moradores passaram a reclamar com o poder público sobre os problemas causados por essas cozinhas.
Entre as queixas, estão o barulho alto dos exaustores, a movimentação de motos de entregadores, o mau cheiro e a gordura impregnada em roupas. Em matéria publicada pelo g1, uma moradora relata que precisou se mudar de casa.
“A gente estava trancada em casa trabalhando em home office. O cheiro de gordura entrava e não dava para lavar roupa porque a gordura grudava, a casa toda ficava impregnada… Naquela época o barulho era equivalente a uma turbina de avião ligada no nosso ouvido todos os dias das 9h até 0h”.
Mariana Paker, moradora da Vila Romana, em entrevista ao g1
Mariana passou a ter crises de ansiedade e entrou com uma representação no Ministério Público (MP-SP) contra a empresa responsável pelo galpão, a Kitchen Central. Mais relatos podem ser encontrados no Reclame Aqui.
Outros moradores da Vila Romana também se pronunciaram em audiências públicas realizadas na Câmara Municipal de São Paulo em junho deste ano, como foi o caso de Marcos Rosiê. Em seu depoimento, ele elencou os impactos que as dark kitchens têm nas regiões nas quais estão instaladas:
“Quando você tem 35 cozinhas expelindo ar, isso gera barulho, isso gera cheiro, isso gera gordura, isso gera lixo quando você tem motoboys indo e vindo para atender 35 cozinhas. E isso tem um impacto na vizinhança. E, quando você tem essa proximidade com residências, é inevitável que você tenha incomodidade”.
O Tecnoblog foi convidado pela Kitchen Central, empresa especializada em dark kitchens, para conhecer uma das unidades.
O estabelecimento visitado fica no Butantã, Zona Oeste da capital. Mais precisamente, ele está na Avenida Valdemar Ferreira, parte do corredor que liga a Cidade Universitária da USP ao Jockey Clube de São Paulo.
O prédio é todo preto, exceto por uma arte na frente. Há também uma identificação com a marca da Kitchen Central e logos de apps de entrega: iFood, Rappi e Uber Eats — este último já deixou de operar no Brasil, inclusive.
Na frente, há bancos para os entregadores, além de um bebedouro, um banheiro e um micro-ondas para esquentar refeições. Cerca de três entregadores aguardavam no local.
A construção tem três andares e capacidade para mais de 20 cozinhas — nem todos os espaços estão locados. Cada cozinha fica em uma ambiente separado. Vazio, ele já vem com coifa e instalações de água, gás e eletricidade.
A visita foi feita às 15h de uma quinta-feira, fora do horário de pico. O movimento no local, tanto de entregadores na parte de fora quanto nas cozinhas, era muito pequeno.
Não havia cheiro do lado de fora — nem mesmo aquele típico das imediações de restaurantes de fast-food.
O prédio conta com seus próprios funcionários para auxiliar nas entregas. O sistema de cada restaurante se conecta a uma central.
Em uma sala que dá para a calçada, um painel avisa quando os pedidos estão prontos. Um dos empregados, então, busca o prato na cozinha e repassa ao entregador
Jorge Pilo, gerente geral da Kitchen Central, também mostrou a área de chaminés da unidade. Instalada entre o forro do último andar e o telhado, são nove chaminés e duas caixas d’água no espaço.
Não há cheiro forte nem muito ruído — mas, novamente, o movimento de entregas era baixo no horário da visita.
A Kitchen Central tem 23 unidades no Brasil, sendo 11 em São Paulo — a empresa também está presente em Rio de Janeiro (RJ), Belo Horizonte (MG) e Brasília (DF). As operações começaram em 2020, já durante a pandemia de COVID-19.
O executivo considera que a Kitchen Central ajuda os restaurantes a se concentrarem no que fazem de melhor: comida. Como a dark kitchen tem uma estrutura pronta, ela já cumpre muitas das exigências legais feitas a estabelecimentos desse tipo.
Não apenas exigências legais, aliás. Pilo menciona os lavadores de gases, que ajudam a diminuir o cheiro de gordura na vizinhança. Ele diz que os equipamentos são caros, e que dificilmente um restaurante sozinho tem condições de arcar com um deles. Na dark kitchen, o custo é diluído entre todos.
O gerente da Kitchen Central também garante que as reclamações dos vizinhos são recebidas e solucionadas na medida do possível. “Nem sempre a solução que a gente dá é suficiente para o outro lado. Muitas vezes a pessoa fala ‘eu não quero que você esteja aqui'”.
“Ninguém quer morar perto de um hospital”, compara Pilo. “Tem muita ambulância, tem muito trânsito…, mas o hospital tem direito e necessidade de existir ali”.
Pilo explica que a escolha dos locais das dark kitchens leva em conta a densidade populacional. Regiões mais densas costumam ter mais pedidos de delivery e ser mais atraentes para restaurantes.
Nos bairros, a questão é jurídica. “Onde, neste bairro, pode existir uma dark kitchen? Existe uma regulação para isso. Se é residencial ou não, quanto tamanho você pode construir — isso está bem regulado na cidade”.
Depois, é casar o que a regulamentação permite com o que é interessante para a empresa. “Tem zona que você só pode [ter] estabelecimentos de determinado tamanho, e não é interessante para gente”.
O gerente conta que muitos dos imóveis comprados pela empresa estavam abandonados: “Tinha lugar que era uma agência de banco fechada há cinco anos”.
Pilo elogia o Plano Diretor de São Paulo e diz que as dark kitchens podem ajudar a encurtar distâncias entre residências, empregos e consumo, que também é um objetivo da lei. “Eu trago a comida perto de onde as pessoas moram. Isso reduz trânsito, custo de logística e emissões de CO₂”.
O executivo diz que é natural que haja uma regulamentação específica para o setor, mas pede que ela seja “objetiva”, com critérios técnicos. “É um negócio simples. Não é espectro eletromagnético, coisa assim. É real estate e suporte ao cliente”, defende Pilo.
Para entender como esse tipo de empreendimento pode afetar uma cidade, o Tecnoblog entrou em contato com a Dra. Viviane Rúbio, docente do curso de Arquitetura e Urbanismo do Mackenzie e membro do Conselho Municipal de Política Urbana de São Paulo.
Segundo ela, ter regulamentação é fundamental, assim como aconteceu com a Uber no início das atividades no Brasil.
“Será preciso ter uma regulamentação específica para essa modalidade. Imagina ter várias chaminés industriais rodando e [com fumaça] indo para cima dos edifícios residenciais da cidade. Tudo o que é implantado no município tem um desdobramento na região. Então é preciso ter um olhar mais cuidadoso para onde colocar esses empreendimentos, já que isso tem uma dinâmica urbana diferente”.
Além disso, Viviane aponta que muitas dark kitchens estão em funcionamento sem respeitar as regras de zoneamento da cidade.
“Essas dark kitchens estão sendo implantadas sem respeitar as regras de zoneamento. Aí temos os problemas relacionados ao cheiro, ao barulho e à movimentação de veículos que incomodam os moradores da região. Eu não sou contra essas inovações, mas temos que nos preocupar com a regulamentação desse tipo de uso do solo, e isso deve partir do poder público municipal”.
Por conta da falta de regulamentação, as dark kitchens podem ser classificadas de maneira equivocada na lei de uso e ocupação do solo da cidade de São Paulo.
Essa lei define os parâmetros de incomodidade por zona, limitando ruídos por faixa de horário, vibração, emissão de radiação, emissão de odores e emissão de gases. Entretanto, na prática, não é bem assim.
Cozinhas pequenas são permitidas em zonas mistas da cidade — áreas onde construções de porte industrial e residencial podem ser instaladas.
Porém, dark kitchens como as citadas, que contam com mais de 20 cozinhas operando em um mesmo local, tornam a convivência inviável pelos problemas causados. Essa é uma das principais queixas feitas pelos moradores das regiões afetadas.
Outro problema causado pela ausência de regulamentação é a falta de fiscalização da vigilância sanitária.
Em junho deste ano, a Coordenadoria de Vigilância em Saúde (Covisa) da cidade de São Paulo foi convidada a prestar esclarecimentos sobre as dark kitchens na CPI dos Aplicativos.
Durante o depoimento, Paulo Silva, técnico do Núcleo de Alimentos da Covisa, afirmou que a licença sanitária é concedida automaticamente aos estabelecimentos que atuam nessas cozinhas compartilhadas.
“Restaurantes, bares, lanchonetes, são serviços de alimentação de baixo risco, por isso não são realizadas inspeções prévias para a concessão da licença sanitária a estes estabelecimentos. Porém, eles não estão isentos de serem fiscalizados se recebermos alguma denúncia pertinente.”
Além disso, Paulo explicou que ainda não existe uma categoria que inclua os galpões das dark kitchens nas normas de vigilância sanitária da cidade.
“[…] atualmente não existe uma atividade econômica denominada de ‘condomínio de cozinhas’. O que existem são serviços de alimentação classificados como lanchonetes, restaurantes, bares e quando eles pedem a licença é nessa qualidade”
O Tecnoblog entrou em contato com a Covisa para saber se houve alguma alteração nas normas de concessão de licença.
Também procuramos o iFood e o Rappi, visto que, até 2020, as plataformas não pediam essa documentação para as dark kitchens, já que seria responsabilidade apenas dos restaurantes. À CPI, o gerente da Kitchen Central, Jorge Pilo, confirmou essa informação.
Não tivemos respostas dos citados acima até a publicação da matéria.
Conforme noticiado pelo Tecnoblog, em maio deste ano, a Prefeitura de São Paulo enviou à Câmara Municipal um projeto de lei que propõe algumas regras para essas cozinhas.
Uma delas diz respeito ao funcionamento entre 1h e 5h. Elas precisarão ter adequação acústica e não gerar incômodo. Caso contrário, é proibido operar.
Outra mudança é que os serviços de delivery não poderão usar calçadas. Isso vale tanto para carga e descarga quanto para acomodação de motocicletas e bicicletas.
Para contornar, os proprietários deverão alocar um espaço no galpão para os prestadores de serviço. O projeto de lei determina uma vaga para cada 12 m² de área de cozinha. Além disso, as cozinhas deverão ter um laudo técnico em relação à emissão de gases, vapores e odores.
Entretanto, de acordo com a Câmara, o modelo de negócio não será modificado para que as empresas cheguem em um consenso com os moradores. O PL 362/2022 também não menciona a necessidade de adequação à lei de zoneamento da cidade.
Segundo comunicado divulgado no site oficial da Câmara Municipal de São Paulo, a expectativa é que o projeto de lei seja votado no dia 18 de agosto.
Caso seja aprovado, as empresas que gerenciam os galpões terão 180 dias para cumprir as novas determinações.