Ecad quer cobrar por streaming de música na internet. Isso faz sentido?
O caso é um pouco mais complicado do que "sim" ou "não" e pode resultar em mudanças na legislação
Rádios que fazem streaming de música ou simulcasting de sua programação devem pagar a mais por isso? Segundo o Ecad, sim. O órgão, Escritório Central de Arrecadação e Distribuição, na nomenclatura completa, quer que a Oi FM pague por transmitir sua programação na internet. A empresa, claro, é contra, e o Tribunal de Justiça do Rio (TJ-RJ) também.
Mas esse caso pode não acabar tão cedo e traz um sentimento de déjà vu, porque já aconteceu antes com vídeos do YouTube incorporados em blogs. Mas vamos lá: dessa vez, o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Ricardo Villas Bôas Cueva, abriu um debate público (REsp 1559264) para questionar a decisão do TJ-RJ de rejeitar a cobrança do Ecad por direitos autorais à Oi FM.
O debate aconteceu na segunda-feira (14) e, conforme aponta o Mobile Time, a principal discussão foi se a transmissão de música pela internet é uma execução pública ou não. Juristas e o Ministério da Cultura estão do lado do Ecad, defendendo que o streaming caracteriza sim execução pública e que a rádio deve pagar pelo simulcasting.
Pode parecer uma discussão concentrada, mas na verdade o buraco é bem mais embaixo: a ideia foi proposta em vista do número cada vez maior de rádios que disponibilizam sua programação pela internet. Isso deve configurar uma nova cobrança por direitos autorais? E os serviços de streaming, também devem pagar?
Para ter um panorama geral do assunto e uma opinião bem embasada, conversei com Rafael Salomão Romano, advogado especialista em properiedade intelectual do escritório Kasznar Leonardos. Rafael se disse contra a cobrança, apesar de existir um fundamento legal. Antes de se aprofundar na questão, vamos entender como o órgão funciona e por que ele quer recolher esse dinheiro da Oi FM.
Entendendo o Ecad
O Ecad existe porque está previsto na lei federal 9.610/98, que tem legitimidade como órgão para arrecadar o dinheiro pela execução pública em locais de frequência coletiva (guarde esses termos) de obras intelectuais e depois repassar o valor para artistas. 85% do dinheiro pago por quem fez essa execução vai para os autores, enquanto 15% fica com o Ecad.
Na lei, são especificados locais de frequência coletiva como hospitais, hotéis, teatros, cinemas, clubes e radiodifusão (rádio ou TV). Não há nenhuma menção à internet porque a lei foi criada em 1998, e é por isso que existe tanta discussão sobre o assunto ― e nada ainda foi resolvido.
A discussão da segunda-feira foi baseada principalmente no dilema: uma rádio, que já paga por direitos autorais pela transmissão em FM, também deve desembolsar uma certa quantia por disponibilizar sua programação na internet? Para o Ecad, sim. É outro meio em que a obra está sendo transmitida, então deve haver outro pagamento.
Isso já acontece com a Rede Globo. Quando a emissora coloca uma música na novela, além de pagar pelo direito autoral da sincronização (a autorização do autor para transmitir aquela obra audiovisual), ela deve pagar ao Ecad pela execução pública daquela novela. A TV Globo chegou até a fechar um acordo sobre uma dívida de 2,5% sobre o faturamento bruto (!) da emissora inteira.
O YouTube também paga ao órgão pela exibição dos vídeos, como já apuramos no passado. É pago R$ 1,00 a cada 150 mil visualizações. De 2010 a 2011, isso resultou em R$ 252 mil ao escritório, que faturou R$ 458 milhões em 2010. Na época, o Ecad queria até cobrar os sites e blogs que incorporam os vídeos do YouTube nos posts, mas o caso acabou esfriando.
Mas não é como se o escritório não tivesse bases legais. Como me explica Rafael, se você comprar um CD e botá-lo para tocar em um churrasco, há a prática da execução pública da obra e, teoricamente, você precisaria pagar impostos. Isso também vale, por exemplo, para colégios e festas de casamento que tocam músicas ― e o Ecad já chegou até a invadir esses estabelecimentos ―, mas é economicamente inviável ir atrás desses pequenos eventos.
Então o que o Ecad faz? Cobra de grandes organizações e vai à justiça para tentar ganhar brigas com as brechas que a lei permite, como esta. Ela também pode cobrar duas vezes, quando quiser: se você é dono de uma loja e coloca uma rádio para tocar lá dentro, pode estar sujeito ao pagamento de direitos autorais. Ainda que a rádio já desembolse o valor, o lojista, teoricamente, também está praticando a execução pública.
Cobrança em dobro?
Mas essa cobrança pela execução pública não pode ser usada para fazer o Ecad receber duas vezes pela mesma transmissão? Teoricamente, sim. A defesa das rádios que fazem streaming pela internet está na interpretação se o meio é um local de frequência coletiva ou não.
Quando o Ecad se envolveu judicialmente com o MySpace, a 10ª Câmara Civil do TJ-RJ também negou a cobrança por direitos autorais por entender que transmitir música pela internet não configura performance pública do conteúdo porque a obra é cedida individualmente ao usuário.
Como aponta o JOTA, o relator do caso, desembargador Bernardo Moreira Garcez Neto, disse que a frequência coletiva pressupõe que muitas pessoas compareçam reiteradamente no mesmo local, como em bares, cinemas, teatros, hotéis e meio de transporte. “Daí a impossibilidade de se interpretar a execução pública prevista na Lei dos Direitos Autorais à simples concepção de ‘um número indeterminado de pessoas’, na medida em que o legislador não visou à indeterminação, e sim à coletividade”, afirmou.
O advogado conta que nesse caso deve haver uma interpretação restritiva da lei, quando há palavras que ampliam a vontade da legislação e a interpretação deve reduzir esse alcance. Dessa forma, o argumento dos serviços de streaming passa a ser sustentado, porque a internet ― que não é mencionada na lei ― não pode ser vista como um local de frequência coletiva.
De qualquer forma, há argumentos para os dois lados. O Ecad pode dizer que não cobra duas vezes, porque cada nova modalidade tem um direito diferente, já que é uma nova maneira de explorar uma obra. A interpretação do escritório diz que a internet é outra modalidade e, portanto, passível de recolhimento de direitos autorais.
A solução, nesse caso, deve ser por uma decisão do judiciário que deve disseminar uma interpretação da lei; ele também poderia fazer uma alteração (já está na hora, hein?), que poderia ir para o lado dos serviços de streaming ou favorecer o Ecad. Dizem que a cobrança na internet pode desestimular os modelos de negócio ou que o Ecad pode não conseguir dessa vez porque já perdeu em casos parecidos antes.
Distinção complicada
Convenhamos que a definição de execução pública é meio vaga e, com as inúmeras possibilidades que a internet entrega, não é possível saber onde uma música pode estar tocando, por exemplo. Se eu assino o Spotify e toco uma música, posso estar ouvindo no meu quarto, com meus amigos ou até mesmo em uma festa. Como o órgão vai diferenciar esses casos?
É uma decisão difícil. Para o advogado, a cobrança não deveria ser feita, apesar de ter fundamento legal. “Ao meu ver, esse tipo de cobrança é indevida. Execução pública pra mim só os casos de execução pública mesmo, de colocar no avião uma música de fundo, por exemplo. Ou em organização de festa, réveillon. Quando você explora comercialmente aquilo ali, que é quando eu acho que deveria ser o caso de haver a cobrança”, explica.
Rafael defende uma mudança na legislação, que acredita ser possível, visto que há diversos projetos para atualizar a lei. Ele ainda conta que essa legislação foi criada inicialmente para proteger o monopólio de empresários que eram donos da prensa para só eles poderem imprimir tal livro. Ao longo dos séculos, ela foi adaptada para todos os tipos de artes.
Só que é meio complicado adaptar uma legislação criada para livros para outros tipos de obras, como músicas e vídeos, ainda mais com toda a evolução tecnológica. “Quando inventaram a gravação de música, todos os músicos protestaram dizendo que aquilo seria o fim da indústria da música porque agora você podia tocar sua música em casa. Quando inventaram o rádio, falaram a mesma coisa, porque ninguém ia comprar um disco pra ouvir música em casa se você podia ligar o rádio e ouvir música de graça”, compara Rafael.
“E quando vem a internet, falaram a mesma coisa, porque todo mundo vai ouvir música de graça e ninguém mais vai comprar um CD. Eles estão sempre atrás na história, né?”, argumenta.