O cabo de guerra entre o Facebook e a Justiça brasileira

Não tem ninguém santo e correto neste processo, que está acumulando erros dos dois lados

Matheus Gonçalves
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• Atualizado há 1 ano
Diego Dzodan, vice-presidente do Facebook para América Latina
Diego Dzodan, vice-presidente do Facebook para América Latina

Como vocês já devem estar sabendo, o vice-presidente do Facebook na América Latina, Diego Dzodan, foi preso nesta terça-feira (1º) pela Polícia Federal quando saía de sua casa para ir ao escritório. A ordem de prisão preventiva, aquela em que não há prazo para a soltura, foi determinada pelo juiz Marcel Maia Montalvão, de Sergipe.

O motivo? “O descumprimento de ordens judiciais em investigações que tramitam em segredo de Justiça e que envolvem o crime organizado e o tráfico de drogas”. Muito provavelmente estamos falando aqui do mesmo processo que mandou operadoras bloquearem o WhatsApp no Brasil por 48 horas, há algumas semanas.

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Não confundir “interceptação de comunicação telemática” com “interceptação de comunicação telepática”. É um pedido da Justiça, mas não da Liga da Justiça.

Segundo a Agência de Notícias da Polícia Federal, curiosamente, as ordens descumpridas têm relação com “requerimento de informações contidas na página do site Facebook.”

Note: “na página do site Facebook”. Seria isso uma generalização, tomando Facebook como um site de páginas como qualquer outro? Estranho, mas continuemos.

Em nota, o Facebook se mostrou decepcionado com a Justiça, uma vez que existe a separação operacional entre a rede social e o aplicativo de mensagens: “Estamos desapontados com a medida extrema e desproporcional de ter um executivo do Facebook escoltado até a delegacia devido a um caso envolvendo o WhatsApp, que opera separadamente do Facebook. O Facebook sempre esteve e sempre estará disponível para responder às questões que as autoridades brasileiras possam ter.”

Curiosidade: eles se negam a usar o termo “preso” ou mesmo “detido”, trocando para “escoltado até a delegacia”.

O caso, claro, passou a ser noticiado em outros países, como nestas matérias do Fortune, The Wall Street Journal, BBC e The Guardian.

Existem alguns problemas complexos nessa trama toda, intrínsecos à forma como a Justiça brasileira lida com internet, mas principalmente como a internet lida com a Justiça brasileira. Vamos por partes.

Sobre Justiça e a internet no Brasil

De fato, o Facebook não é tão somente uma página da web com conteúdo que deva ser retirado do ar, como em casos semelhantes. Mas vamos ainda mais longe: o problema não eram os dados de conversas através do WhatsApp? O que mudou?

Outro problema: o Marco Civil da Internet permite interpretações distintas sobre seus artigos 11 e 12, quando cita operação de coleta de dados, guarda e tratamento de registros, bem como sanções caso a legislação brasileira não seja respeitada. O que está sendo dito ali, segundo meu ponto de vista, é que a coleta de dados e tratamento dos registros deve ser feita com máximo sigilo e que qualquer falha nesse sentido é passível de multa. Talvez não exista nada na nossa legislação que embase o cancelamento do serviço, como no caso do WhatsApp, tampouco a prisão de um executivo da empresa. E isso precisa ser corrigido.

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Mais uma complicação: tecnologicamente, será que é mesmo possível recuperar mensagens e fazer essa quebra de sigilo do WhatsApp? Segundo a empresa, as mensagens são apagadas do servidor assim que são entregues, sem backup. Judicialmente, quem seria de fato o representante do WhatsApp no Brasil? O Facebook? Se alguém precisa ser detido, será que o vice-presidente do Facebook da América Latina seria a equivalente mais próximo? Para pensar…

Sobre serviços online e soberania nacional

Foquemos agora na parte prática da coisa: existe um processo criminal de tráfico de drogas, um problema que assola nosso país há anos, que poderia ser facilitado com a cooperação do WhatsApp, ao liberar as informações que nosso órgão de investigação está pedindo.

O que me lembra um pouco o caso da Apple contra o FBI:

Essa é toda a treta entre o FBI e a Apple no momento. Em loop. pic.twitter.com/sPtqymZBXL

— TOAD (@toadgeek) February 25, 2016

A diferença aqui é que o FBI quer que a Apple deixe a porta aberta e acessível, o que pode se tornar uma grave falha de segurança. Imagino que, no Brasil, a Justiça esteja pedindo apenas a parte do relatório de dados e conversas entre os acusados.

Sim, eu conheço a célebre frase do Benjamin Franklin que diz: “People willing to trade their freedom for temporary security deserve neither and will lose both.” Em tradução livre: “Pessoas que estão dispostas a trocar sua liberdade por uma segurança temporária, não merecem nem liberdade, nem segurança temporária e vão perder os dois.”

Mas eu vejo essa investigação criminal como uma exceção à regra. Posso estar errado, mas eu preferia ver serviços online trabalhando em conjunto com os investigadores para solucionar crimes, dados os devidos limites e a obviedade dos possíveis delitos. Sempre tomando muito cuidado pra que isso não gere uma banalização da quebra de sigilo, o que poderia dar origem a uma sociedade de vigilância. Mas, no final das contas, dou muito mais valor de soberania à Polícia Federal que ao Facebook.

Conclusão

Não tem ninguém santo e absolutamente correto neste processo, que está acumulando erros dos dois lados, o que costumeiramente leva a decisões equivocadas.

É preciso sim um mecanismo e uma série de protocolos de diálogo entre serviços online e órgãos de investigação, numa tentativa de evitar que estes serviços possam estar atrapalhando a evolução saudável de processos criminais.

Todavia, bloquear um serviço (atrapalhando milhares de usuários que nada tem a ver com a história) ou mandar prender um líder de uma empresa relacionada, apenas para fazer pressão diante da inabilidade de se encontrar um responsável, também não é a saída mais correta. Talvez sequer seja uma saída.

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Matheus Gonçalves

Matheus Gonçalves

Ex-redator

Matheus Gonçalves é formado em Ciências da Computação pelo Centro Universitário FEI. Com mais de 20 anos de experiência em tecnologia e especialização em usabilidade e game development, atuou no Tecnoblog entre 2015 e 2017 abordando assuntos relacionados à sua área. Passou por empresas como Itaú, Bradesco, Amazon Web Services e Salesforce. É criador da Start Game App e podcaster do Toad Cast.

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