Bolsonaro muda Marco Civil da Internet contra “censura” em redes sociais

Presidente Jair Bolsonaro assina Medida Provisória que altera Marco Civil da Internet para combater remoção "arbitrária" de contas e conteúdos das redes sociais

Giovanni Santa Rosa
• Atualizado há 11 meses

O presidente Jair Bolsonaro assinou nesta segunda-feira (6) uma Medida Provisória que altera o Marco Civil da Internet e visa combater o que chama de “remoção arbitrária e imotivada de contas, perfis e conteúdos por provedores”. De acordo com a Secretaria de Comunicação da Presidência da República, o texto passa a exigir justa causa e motivação para ações de moderação nas redes e prevê direito à restituição do conteúdo.

A Secom anunciou a decisão em uma sequência de quatro tweets. Mario Frias, Secretário Especial de Cultura, também falou sobre a mudança e disse que o texto “garante a liberdade nas redes sociais”.

O que muda no Marco Civil da Internet

O texto da Medida Provisória já está disponível no Diário Oficial da União. Vale lembrar que uma Medida Provisória entra em vigor no momento de sua publicação, mas tem validade de 60 dias, podendo ser prorrogada por igual período caso não tenha sido apreciada pelo Legislativo. Ela precisa ser aprovada pelo Congresso Nacional para se tornar, de fato, uma lei.

As mudanças acrescentam ao Marco Civil da Internet a definição do que são redes sociais e do que é a moderação delas. 

A MP define que perfis só podem ser excluídos, cancelados ou suspensos, total ou parcialmente, em alguns casos.

Art. 8º-B Em observância à liberdade de expressão, comunicação e manifestação de pensamento, a exclusão, o cancelamento ou a suspensão, total ou parcial, dos serviços e das funcionalidades da conta ou do perfil de usuário de redes sociais somente poderá ser realizado com justa causa e motivação.

No parágrafo 1º, há uma descrição do que seriam essas justas causas:

  • falta de pagamento do usuário;
  • simular identidade de terceiros, salvo em caso humorístico ou paródico;
  • contas geridas por programas de computador, como bots;
  • contas que oferecem produtos que violam patentes, marcas registradas ou direitos autorais;
  • cumprimento de ordem judicial.

O novo texto define que posts só podem ser removidos ou limitados quando houver justa causa e motivação.

Art. 8º-C Em observância à liberdade de expressão, comunicação e manifestação de pensamento, a exclusão, a suspensão ou o bloqueio da divulgação de conteúdo gerado por usuário somente poderá ser realizado com justa causa e motivação.

A MP também define o que são estas justas causas: 

  • desacordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (inciso I);
  • requerimento do ofendido, de seus herdeiros ou representantes legais (inciso III);
  • cumprimento de ordem judicial (inciso IV);

Ainda nessas justas causas, há uma série de casos definidos no inciso II que permitem tanto medidas contra perfis quanto contra publicações:

  • nudez ou representações de atos sexuais;
  • crimes contra a vida, pedofilia, terrorismo, tráfico ou infrações penais sujeitas à ação penal pública incondicionada;
  • apoio a organizações criminosas ou terroristas;
  • ameaça ou violência por preconceito ou discriminação;
  • apologia a drogas ilícitas;
  • ensino de como roubar credenciais ou invadir sistemas;
  • atos contra a segurança pública, defesa nacional ou segurança do Estado;
  • violação de patentes e outros direitos de propriedade intelectual;
  • infração a normas do Conar, que regula a publicidade no Brasil; 
  • disseminação de vírus ou malware;
  • comercialização de produtos impróprios ao consumo segundo o Código de Defesa do Consumidor.

O artigo 8º-D determina que a decisão de moderação precisa informar ao usuário a parte específica do contrato ou termo de uso que foi violada, a postagem ou conduta que violou o termo e o fundamento jurídico da decisão. O usuário precisa ser notificado de forma prévia ou concomitante à decisão.

O texto define que os usuários têm direito a contraditório, ampla defesa e recursos. As redes sociais ficam obrigadas a oferecer no mínimo um canal eletrônico para atender essas queixas. Elas também devem restituir o conteúdo e restabelecer a conta quando houver moderação indevida. A MP proíbe censura de ordem política, ideológica, científica, artística ou religiosa.

As redes sociais terão 30 dias para se adequar às novas regras. Caso violem a nova lei, elas podem ser punidas com advertência, multa de até 10% do faturamento no Brasil, multa diária, suspensão temporária ou proibição de atividades de coleta e tratamento de dados e comunicações.

Governo ensaia mudança no Marco Civil há meses

A medida já era esperada desde o primeiro semestre de 2021. Em maio, uma minuta de decreto previa permitir a remoção de conteúdos e contas apenas com ordem judicial. Em agosto, Bolsonaro voltou a falar sobre o assunto e disse estar preparando um projeto para evitar “censura” a perfis de direita na internet.

As publicações e contas de Bolsonaro e seus apoiadores foram, por diversas vezes, sujeitas a medidas de moderação de redes sociais. Em janeiro, por exemplo, o Twitter ocultou um post do presidente por considerar que havia informações enganosas sobre a COVID-19.

O YouTube, por sua vez, baniu o canal Terça Livre em julho, após três advertências. A rede de vídeos considerou que os vídeos continham alegações falsas sobre a eleição norte-americana e incitação à violência. Allan dos Santos, blogueiro responsável pelo canal, entrou com um processo pedindo sua reativação, mas o Tribunal de Justiça de São Paulo indeferiu o pedido por considerar que houve violação à liberdade coletiva.

O que dizem especialistas no assunto

Para Adriano Mendes, advogado especialista em direito digital e proteção de dados, a medida foi apressada e a discussão poderia ter sido mais profunda. “Sabíamos que isso estava para sair do forno desde março e deveria ser feito por alteração na lei. Perdemos uma grande oportunidade de revisar o Marco Civil e fazer melhor, atualizando diversos pontos.” 

Sobre as justas causas trazidas pelo novo texto, Mendes enxerga lacunas que podem dificultar a moderação das redes sociais.

“Só poderá haver a remoção direta para crimes que não dependam da representação das vítimas. Muitos dos crimes contra a Honra e Pessoa dependem de representação. Neste caso, só poderão ser retirados por ordem judicial.”

Por fim, o advogado também considera que a definição de redes sociais foi muito ampla. “As redes sociais ficaram com um conceito aberto, até veículos de imprensa podem entrar nesse novo ‘conceito’.”

Em conversa com o Tecnoblog, Carlos Affonso de Souza, diretor do Instituto Tecnologia e Sociedade do Rio (ITS Rio) e professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), diz que a MP tem três objetivos: reagir a decisões recentes do Judiciário, reforçar a narrativa de censura das redes sociais e preparar armadilhas para 2022, ano eleitoral.

Na avaliação de Souza, o texto torna mais difícil o trabalho das redes sociais, já que elas precisariam recorrer judicialmente a cada decisão de remover conteúdo que não estivesse contemplado nas justas causas. “Nos grandes casos, isso até é possível, mas no varejo é muito difícil.” Além disso, ele considera que o texto fere a liberdade das empresas de moderar suas próprias plataformas.

Na visão do diretor do ITS Rio, as ausências da lista de motivos possíveis para moderação são reveladoras.

“Você vê a lista e começa a pensar no que ficou de fora: cloroquina, fake news sobre pandemia, fraude eleitoral, voto auditável…”

Assim como Mendes, Souza também questiona a necessidade de uma Medida Provisória: mesmo sendo mais adequada que um decreto, como foi cogitado em maio, esse instrumento deveria ser usado apenas em casos de urgência e relevância. Ele considera que há grande chance de o Supremo Tribunal Federal ser provocado para analisar a questão — seja pela necessidade de uma MP, seja pela constitucionalidade da lei.

De fato, este é um caminho que alguns parlamentares já consideram. Em vídeo publicado nesta tarde, o deputado Alessandro Molon (PSB-RJ), líder da oposição na Câmara, também disse que vai pedir ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), para devolver a MP. Molon foi relator do Marco Civil da Internet.

Em entrevista ao Tecnoblog, Artur Pericles, coordenador da área de liberdade de expressão do InternetLab, destaca que as justas causas não são tão óbvias quanto podem parecer: muitas delas são bastante discutidas no campo do Direito.

Esse espaço para interpretação — aliado às sanções administrativas previstas no texto, que incluem até a proibição de funcionamento — significa um risco: para evitar punições, as redes sociais podem passar a moderar conteúdo da forma como o governo deseja. Elas seriam, portanto, capturadas pelo Poder Executivo.

Pericles também explica que os casos em que existe a permissão para moderação acabam desprotegendo certos conteúdos. Mesmo que certas publicações não sejam ilegais, elas deixam de ter o mesmo direito à liberdade de expressão.

“Se uma plataforma entender que um post defendendo uma manifestação é apoio ao crime, de acordo com o que um governo pensa, ela pode derrubar aquele conteúdo.”

O especialista também lamenta a contaminação do debate sobre a moderação de conteúdo das plataformas. Ele ressalta que há avanços possíveis, como definir que as empresas tenham um processo mais transparente ao derrubar ou manter certos conteúdos, mas diz que a MP vai muito além disso.

Com informações: ConJur, Jota

Atualizado às 21h25 com comentários de especialistas

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Giovanni Santa Rosa

Giovanni Santa Rosa

Repórter

Giovanni Santa Rosa é formado em jornalismo pela ECA-USP e cobre ciência e tecnologia desde 2012. Foi editor-assistente do Gizmodo Brasil e escreveu para o UOL Tilt e para o Jornal da USP. Cobriu o Snapdragon Tech Summit, em Maui (EUA), o Fórum Internacional de Software Livre, em Porto Alegre (RS), e a Campus Party, em São Paulo (SP). Atualmente, é autor no Tecnoblog.