A lamentável bagunça de Elon Musk no Twitter é uma inspiração para outros CEOs
Elon Musk escancara seu poder e influência na administração do Twitter; age friamente com empregados, mas é o exemplo para outros CEOs
Desde que assumiu a rede social, o Elon Musk tem feito e desfeito uma série de mudanças na plataforma. Além de toda a bagunça em recursos e verificações, o que mais me preocupa é o desapego aos empregados, uma cultura que ecoa em (e inspira) outros CEOs.
O criador da framework Ruby on Rails e o ex-CEO do PayPal estão entre os seguidores para os quais retweet é, sim, um endosso da palavra de Musk. Estes nomes têm peso, mas certamente não estão sozinhos. Imagine o grande número de chefes inspirados dentre os 120 milhões de seguidores de Musk.
Meu trabalho, minha vida
Empresas de tecnologia e startups alavancaram o “dream job”. Eu lembro de assistir Os Estagiários, de 2013, e me imaginar passando minha vida dentro de uma das sedes do Google. O cenário hoje pode estar muito diferente, mas os atrativos ressoam por várias outras companhias assim: sala de jogos, comida de graça, festas durante a semana.
É uma cultura que, como afirma Simone Stolzoff, autora do livro The Good Enough Job: Reclaiming Life From Work, faz o trabalho preencher outras lacunas nas vidas dos funcionários, quais eram ocupadas pela comunidade ou igreja e dá motivos implícitos para que eles estendam a jornada de trabalho. Uma cultura ou, segundo Stolzoff, um tipo de religião.
Este tem sido o cenário nos últimos anos, que agora é ameaçado pela recessão. Não que grandes empresas como Microsoft e Meta não tenham caixa para manter a folha de pagamento, mas, como bem lembra o Recode, “sua empresa não vai te amar de volta”.
O TechCrunch define o momento como a volta do pêndulo do poder para os CEOs. Antes das demissões em massa, os empregados conseguiam argumentar, negociar e exigir não só condições melhores, mas outros luxos no ambiente de trabalho também, além do próprio salário. Segundo o WSJ, a média de um cargo comum no Google era de quase 300 mil dólares no ano.
Agora, parece que essas negociações e happy hours estão com os dias contados: a Meta encerrou o serviço de lavanderia oferecido aos funcionários, e mudou o início do jantar para 18h30 — meia hora após saírem os últimos ônibus que levam os empregados para casa.
Brooks E. Scott, CEO e coach-executivo da Merging Path, uma empresa focada em consultoria para líderes, disse ao Recode que “precisamos parar de construir e colocar muita confiança nas instituições (…) no fim do dia, uma companhia é um negócio, por mais que pregue o conceito de ‘pessoas primeiro'”.
Ame-o ou deixe-o
Desde que entrou no Twitter, Elon Musk prega uma cultura de pegar ou largar (o emprego). Por livre e espontânea vontade ou ultimato do empresário.
No primeiro dia, cinco executivos saíram da rede, dentre eles o então CEO, Parag Agrawal. Em seguida, 3.700 funcionários foram demitidos friamente — alguns só descobriram porque perderam o acesso ao e-mail profissional.
Com todas as demissões, vários departamentos foram afetados — direitos humanos, acessibilidade, ética de aprendizado de máquina, transparência e responsabilidade, publicidade, marketing, comunicações, engenharia e curadoria. Algumas dessas pessoas, inclusive, seriam recontratadas porque a demissão ocorreu “por engano”.
E até mesmo quem ficou no Twitter precisa manter o estado de alerta. Criticar o novo chefe no Slack também é motivo de demissão, independentemente da sua contribuição na plataforma. Os que ficarem devem aceitar o ritmo hardcore da nova cultura da empresa. Poucos restaram: funcionários saíram em massa e, agora, estima-se que a rede tenha menos de 1.000 pessoas, contra os 7.500 na era pré-Musk.
Deu certo lá, por que não daria aqui?
Se o Twitter sobreviver, se virar uma rede social lucrativa e que atraia mais usuários (tenho dúvidas se está nesse caminho), só reforçará que todas essas ações “deram certo”. Será o argumento que CEOs ao redor do mundo anseiam para fazer o mesmo.
Alguns, inclusive, já se sentiram confortados por Musk e perderam o medo da retaliação. Afinal, o dono da Tesla se mostra confiante no investimento de US$ 44 bilhões.
David Heinemeier Hansson, criador do framework Ruby on Rails e co-criador do Basecamp, publicou recentemente um artigo chamado “The waning days of DEI’s dominance” (os últimos dias do domínio do DEI, em tradução livre) — via The Verge. DEI é um movimento que defende diversidade, equidade e inclusão. Na postagem, Hansson escreve:
O movimento DEI perdeu o controle do Twitter, que servia como o principal instrumento de execução ideológica na esfera corporativa. A ameaça das máfias no Twitter garantiu o acordo rápido de executivos corporativos e outras figuras de poder, para que a forca não fosse apontada para seus pescoços.
Mas agora o Twitter é propriedade de Elon Musk. Um fato que alterou fundamentalmente o equilíbrio de poder na plataforma.
Não só as discussões sobre diversidade, igualdade e inclusão são postas em xeque. Mas também a da qualidade de vida no ambiente de trabalho. Para o ex-CEO do PayPal David Marcus, “os dias de reclamar com o CEO de uma big tech sobre a qualidade do papel higiênico chegaram ao fim”.
Para estes CEOs, funcionários não têm o direito de exigir tanto, mesmo que sejam lucrativos para a empresa. O caso de Marcus ocorreu na Meta, onde também trabalhou e quando a empresa gerava cerca de US$ 1,6 milhão em receita por empregado anualmente. Em uma equipe em que engenheiros escolhiam seus empregos, não que fosse a única alternativa estar ali.
Em harmonia com Marcus, temos Michael Friedman, CEO da First Level Capital — uma empresa americana que atua no ramo de investimentos. “Acho que todo CEO bem-sucedido, eu incluso, está cansado de todo o ‘mimimi’”, ele disse ao Wall Street Journal.
Por sua vez, Derek Grubbs, diretor de desenvolvimento de vendas na Crux Informatics, considera que Musk pode dizer e fazer o que bem quiser. “Se todo mundo sair do Twitter, terá muitas pessoas que gostariam de trabalhar lá porque paga bem e porque existe algo único em trabalhar para Musk.”
Visões como a de Musk estão espalhadas nas diversas esferas do mercado. Em grandes empresas ou na vendinha da esquina. Eu não diria que vivemos um retrocesso em relação às lutas trabalhistas ou movimentos sociais, só que o atual do CEO do Twitter escancara o que pode fazer aqueles com o poder (e estômago).
E como diz Derek Grubbs, da Crux Informatics: o restante do mundo que tem uma opinião sobre isso “pode só ficar irritado”.