Como o Boeing 737 Max 8 virou um vilão na aviação comercial
Após acidentes da Lion Air e Ethiopian Airlines, medo de falha em projeto fez operadoras deixarem o Boeing 737 Max 8 no chão
Após acidentes da Lion Air e Ethiopian Airlines, medo de falha em projeto fez operadoras deixarem o Boeing 737 Max 8 no chão
No último domingo (10), um Boeing 737 Max 8 da Ethiopian Airlines caiu minutos após a decolagem. Todos os 149 passageiros e os oito tripulantes morreram. A tragédia levou várias operadoras, incluindo a brasileira Gol, a suspender voos com o mesmo modelo de avião. Para solucionar essa crise, a Boeing promete, entre outras medidas, uma atualização de software. Mas é suficiente?
Embora não seja a primeira vez, não é comum que companhias aéreas interrompam o uso de determinado tipo de aeronave após o modelo se envolver em um acidente aéreo. Mas dois fatores acenderam o sinal de alerta sobre o Boeing 737 Max 8: o pouco tempo de operação do modelo — o primeiro voo comercial foi realizado em 2017 — e a ocorrência de dois acidentes graves em um intervalo de aproximadamente seis meses.
O primeiro acidente aconteceu em 29 de outubro de 2018, no voo de prefixo JT610. Um Boeing 737 Max 8 da Lion Air com 182 passageiros e sete tripulantes caiu no mar de Java 13 minutos depois de decolar de Jacarta, na Indonésia, em direção a Pangkal Pinang. Não houve sobreviventes.
Chama atenção de autoridades e especialistas em aviação o fato de o avião da Ethiopian Airlines também ter caído instantes após a decolagem: de acordo com a própria companhia aérea, a aeronave que cumpria o voo ET302 sumiu dos radares apenas seis minutos depois de decolar de Adis Abeba, na Etiópia, em direção a Nairóbi, no Quênia.
Coincidência não é uma palavra bem-vinda no setor aéreo, pelo menos no que diz respeito a acidentes. As semelhanças entre as duas quedas são inevitavelmente perturbadoras. É por isso que o Boeing 737 Max 8 está agora diante de uma enorme desconfiança.
Atualmente, cerca de 40 operadoras realizam voos com o Boeing 737 Max 8. Bimotor, o modelo faz parte da linha 737 Max que, por sua vez, corresponde à quarta geração da família 737. O Boeing 737 Max 8 em si é o substituto do Boeing 737-800 (família 737 New Generation ou 737 NG) e é tido como um rival direto do Airbus A320Neo, que começou a operar em 2016. O modelo pode transportar até 210 passageiros.
O projeto da família 737 Max começou em 2011. O primeiro voo foi realizado em 2016 e as operações comerciais tiveram início em 2017. O principal atrativo das novas aeronaves é o desempenho operacional: teoricamente, os aviões 737 Max são mais baratos na manutenção e até 20% mais econômicos no consumo de combustível do que a geração anterior.
Não por acaso, só o Boeing 737 Max 8 já acumula mais de mil encomendas, a maior parte de companhias asiáticas. No Brasil, a Gol opera atualmente sete unidades do modelo, mas encomendou cerca de 130 aeronaves. O preço de cada unidade depende da configuração e da negociação, mas fica na casa dos US$ 120 milhões.
A Administração Federal de Aviação (FAA, na sigla em inglês) dos Estados Unidos considera o Boeing 737 Max 8 um avião seguro. Porém, depois do recente acidente com a aeronave da Ethiopian Airlines, várias companhias decidiram manter as suas unidades do modelo em terra.
O movimento começou na China, justamente o país que mais tem unidades do Boeing 737 Max 8 em operação. A Administração da Aviação Civil da China (CAAC) diz que a decisão de suspender os voos com o modelo se deve à similaridade de circunstâncias entre os acidentes da Lion Air e Ethiopian Airlines.
Na sequência, companhias de outros países tomaram decisões equivalentes, incluindo a Gol, a única aérea a operar com o Boeing 737 Max 8 no Brasil (sem considerar companhias estrangeiras que ocasionalmente enviam o modelo para cá). O Procon-SP chegou a pedir que a companhia suspendesse os voos com o modelo, embora, aparentemente, a decisão não tenha tido relação com a solicitação da entidade.
Não há nada, pelo menos até agora, que relacione o primeiro acidente com o segundo. Mas como não está descartada a possibilidade de as causas serem as mesmas, a ordem em todas as companhias que suspenderam voos é uma só: esperar.
Sendo Segurança o valor número um da GOL, que direciona absolutamente todas as iniciativas da empresa, a companhia informa que por liberalidade, a partir das 20:00 horas de hoje, suspenderá temporariamente as operações comerciais das suas aeronaves 737 Max 8.
— GOL Linhas Aéreas (@VoeGOLoficial) March 11, 2019
As investigações ainda não terminaram, mas apontam preliminarmente que os pilotos do voo JT610 tiveram dificuldades com os sistemas que evitam que a aeronave entre em estol, ou seja, perca sustentação e caia.
Existe um mecanismo chamado sensor de ângulo de ataque (Angle of Attack) que é essencial para evitar um estol. Explicando rapidamente, o componente indica o quanto de sustentação as asas proporcionam em determinada velocidade ou ângulo de inclinação. Se o ângulo de ataque for muito íngreme, sistemas de segurança alertam os pilotos ou, automaticamente, orientam o nariz do avião para baixo para evitar o estol.
Aparentemente, um defeito em um dos sensores de ângulo de ataque foi a principal causa do acidente do voo JT610. Os pilotos teriam tentado jogar o nariz do avião para cima várias vezes, mas um sistema antiestolagem, tendo como base as leituras errôneas dos sensores, jogava o avião para baixo.
Esse sistema é o Maneuvering Characteristics Augmentation System (MCAS). Há uma razão curiosa para ele ter sido instalado: os motores LEAP-1B. Eles são mais eficientes que os motores da linha 737 New Generation, mas também maiores. Para deixá-los praticamente na mesma altura em relação ao solo que na geração anterior, a Boeing colocou ambos em uma posição mais à frente e que ao mesmo tempo cobre parte da borda das asas. Veja o comparativo:
O problema é que esse posicionamento pode desestabilizar a aeronave mais facilmente. Tudo fica bem quando o avião opera em ângulos de ataque normais (normalmente, entre 3º e 5º), mas pode haver problemas de estabilidade se a inclinação atingir um nível crítico (14º ou mais).
É aqui que o MCAS passa a fazer sentido. Esse sistema joga o nariz da aeronave para baixo quando ela atinge um nível crítico de inclinação, desde que alguns requisitos sejam verificados: o piloto automático não poder estar ativado e os sensores devem indicar um ângulo de ataque inseguro.
Agora vem o detalhe mais surpreendente: muitos pilotos disseram que só passaram a saber da existência do MCAS depois do acidente com o avião da Lion Air. Na época, Jon Weaks, presidente da Southwest Airlines Pilots Association, chegou a dizer que sequer havia menção ao MCAS nos manuais (apesar de outros documentos da Boeing citarem o sistema).
Pode ter sido o caso dos pilotos do voo JT610: é de se presumir que, se eles conhecessem bem o mecanismo de ação do MCAS, teriam conseguido cortá-lo quando, por conta da falha nos sensores, o sistema passou a jogar a ponta do avião para baixo.
Como as investigações estão apenas começando, não dá para afirmar que o MCAS teve relação com a queda do avião da Ethiopian Airlines. Mas a desconfiança recai sobre esse sistema por causa das circunstâncias similares às do caso da Lion Air — relembrando, ambos os aviões caíram minutos depois de levantar voo.
Provavelmente, os pilotos do voo ET302 foram orientados a respeito do MCAS depois do acidente com a aeronave da Lion Air, mas o que garante, por exemplo, que uma inconsistência imprevisível nesse ou em outro sistema não tenha causado a queda? Na dúvida, é melhor deixar as aeronaves paradas mesmo.
A situação não está fora de controle, apesar disso. Depois do primeiro acidente, a Boeing passou a trabalhar em atualizações nos manuais das aeronaves, procedimentos de voo e orientações para treinamento dos pilotos. Ela também promete um update de software a ser liberado a partir de abril que inclui aprimoramentos no MCAS.
Mas essa é só uma parte do processo. Também é preciso verificar se não houve negligência por parte das companhias aéreas, seja no âmbito da manutenção, seja no treinamento dos pilotos.
Fato é que a aviação comercial abraçou a família Boeing 737 Max — com destaque justamente para o 737 Max 8 — rapidamente por conta das promessas de menos gastos com combustível e manutenção. Mas, até agora, só houve um prejuízo imensurável: a perda de centenas de vidas.
Com informações: G1, BBC, El País, The Guardian, Wired, Quartz, The Air Current, Seattle Times, Leeham.