iFood domina o delivery no Brasil, mas restaurantes e rivais contam como vão reagir
iFood corresponde a mais de 80% das vendas de delivery em marketplaces; restaurantes estão descontentes, e empresas de todos os tamanhos querem uma fatia do mercado
iFood corresponde a mais de 80% das vendas de delivery em marketplaces; restaurantes estão descontentes, e empresas de todos os tamanhos querem uma fatia do mercado
No dia 6 de janeiro de 2022, uma notícia pegou muita gente de surpresa: o Uber Eats deixaria de entregar refeições em 7 de março, dali a dois meses, passando a se dedicar apenas a supermercados e logística. A saída de uma gigante causou perplexidade: será que ninguém mesmo consegue fazer frente ao iFood? Desafiantes não faltam: de empresas de gestão a outras companhias enormes, todo mundo quer abocanhar uma fatia do mercado. E interessados sobram: restaurantes têm críticas e reclamações de sobra.
Você, leitor, provavelmente tem o iFood instalado no seu celular. Eu tenho. O aplicativo virou para mim a primeira opção quando quero comer alguma coisa que não tem em casa.
Mas como chegamos aqui?
No meu caso, foram os cupons de desconto. Até dois ou três anos atrás, a pizza mais barata do bairro onde moro, na zona norte de São Paulo, estava no iFood — e ela ficava ainda mais barata com a promoção. Hoje, ela não é mais a opção mais em conta, e os cupons sumiram.
“Queimar dinheiro” com marketing e estratégias agressivas foi um dos caminhos para conquistar a preferência do cliente. “O iFood joga com outras regras”, comenta Renato Almeida, da CEO da Consumer.
A Consumer desenvolve sistemas de gestão para restaurantes e desde 2017 conta com o MenuDino, que permite que os estabelecimentos criem seus aplicativos próprios de delivery.
“O mercado de delivery depende muito desse fluxo de queima de dinheiro. É uma briga de milhões e milhões de reais. O iFood não dá lucro, e queima o caixa para crescer”, diz Kerler Chaves, CEO da KCMS, empresa de tecnologia que fornece ferramentas para restaurantes.
Um diferencial do iFood foi encontrar novas formas de conseguir dinheiro para queimar. É o que explica Dennis Nakamura: ele é sócio do O Board, mentor de startups e ex-gestor do iFood.
Nakamura chama esses novos negócios da empresa de “spin-offs”.
O iFood começou em 2011 com venda de comida e, em 2015, entrou no mercado de entregas. Depois, em 2016, veio a revenda de embalagens para os restaurantes, seguida por outros insumos.
Não parou por aí. Criou sua própria adquirente para não depender da Elavon, da Stone. Depois veio o iFood Pay, com pagamentos em restaurantes usando QR Code e contas digitais.
“Em cada um desses serviços, o iFood cobra uma parte como qualquer banco ou prestador de serviços”, explica Nakamura. “Ele cria e fornece novos produtos e serviços para a sua própria base de consumidores e clientes que já possui.”
O ex-gestor do iFood, porém, diz que não é apenas questão de investir todo o caixa. Ele destaca outras estratégias.
Uma delas são os algoritmos da plataforma que ajudam os restaurantes a venderem mais. “Esse é o maior objetivo do parceiro que entra para o iFood”, comenta Nakamura.
Os pagamentos no próprio aplicativo também deram mais segurança e praticidade a consumidores, além de criarem possibilidades de presentear amigos e familiares que estão em outro lugar.
Por fim, e talvez o mais importante nisso tudo, vêm os entregadores.
No começo, o iFood estava disponível apenas para os restaurantes que já tinham delivery, mas a empresa foi além.
“Chegou num ponto que precisávamos entregar também, pois muitos restaurantes não possuíam e nem gostariam de ter entregadores próprios”, conta Nakamura. “Isso possibilitou diversos restaurantes que antes não gostariam ou não podiam ter entregadores próprios a fazerem delivery.”
O iFood respondia por 83% dos pedidos nos chamados marketplaces, que agregam diversos restaurantes, de acordo com estimativas feitas no do segundo trimestre de 2021 a partir da emissão de notas fiscais. O restante ficava dividido entre o Uber Eats (13%) e o Rappi (4%).
Os atrativos parecem muitos, mas tem gente que quer mesmo é cair fora.
Luise Macedo abriu o Buena Onda Burritos há mais de três anos em Ponta Grossa (PR). O estabelecimento está no iFood, mas a dona não está contente com a plataforma.
Ela se queixa que a empresa adotou uma forma de gamificação, colocando desafios para o restaurante “subir de nível” no marketplace. E estas exigências não levam em consideração a realidade do estabelecimento.
“No iFood, eu estou há três anos mas ainda sou tida como iniciante, porque meu cardápio não tem tantas opções”, diz a proprietária. Ela explica que, como seu restaurante é pequeno, a proposta é ter poucos itens no menu. Só que o iFood ignora isso.
“Não está dentro da minha realidade colocar mais sete itens no cardápio. Não vou vender bala e pirulito para completar [os requisitos] e sair da fase iniciante. Para mim, isso não faz sentido nenhum. São metas que não são adequadas para vários restaurantes, principalmente com espaço pequeno e equipe pequena.”
Luise Macedo, dona do Buena Onda Burritos
Se Luise concordasse com isso, poderia “passar de fase”, o que poderia melhorar seu ranqueamento na plataforma. E o que viria depois? Ela diz que não sabe, porque o aplicativo não mostra quais são os próximos requisitos.
Quem também tem queixas sobre o iFood é Mário Rabelo, um dos sócios do Generoso Burger.
O Generoso começou em 2019 no Largo São Francisco, na região central de São Paulo (SP), e se mudou para o bairro de Vila Buarque em abril de 2021.
Mas foi em 2020 que seu negócio teve uma mudança brusca, com o início da pandemia de COVID-19.
O Largo São Francisco, área comercial com bastante movimento de trabalhadores e estudantes da Faculdade de Direito, ficou deserto da noite para o dia.
A saída foi recorrer aos marketplaces — e enfrentar as dores de cabeça. Falando ao Tecnoblog, Mario reclama das arbitrariedades do iFood.
Ele diz que o aplicativo, em dados momentos, reduz a área de entrega do Generoso de 7 km para 1 km. A justificativa é a alta demanda. “Se a região está com alta demanda, eu quero fazer parte disso, desse momento de venda”, questiona.
Outro problema é a falta de controle sobre promoções que a própria plataforma cria.
Mário conta que, por causa das altas nos preços, precisava fazer uma alteração em um dos combos do cardápio, mas não conseguiu. O iFood, no entanto, criou uma oferta ligada à Coca-Cola, bloqueando o item.
“Eu não consigo alterar o valor do combo. Você entra na plataforma, na parte de promoções, e não existe uma opção para gerenciar as promoções. Tem que abrir um chamado, e ele tem um tempo de 72h de análise. E isso por uma coisa que eu não pedi. O iFood controla isso, e nesse caso quem paga é o pequeno. Ou o desativo o combo, ou deixo e tomo prejuízo.”
Mário Rabelo, sócio do Generoso Burger
O Generoso também passou a fazer entregas com a Rappi, mas logo desistiu. Mário diz que o volume de pedidos pela plataforma era de cerca de 5% do total, sendo o restante do iFood. Estar em uma segunda plataforma com problemas muito parecidos com os da primeira não valia a pena.
O Tecnoblog entrou em contato com o iFood, mas a empresa não enviou as respostas solicitadas até a publicação desta reportagem.
Mário e Luise podem estar a centenas de quilômetros um do outro, mas uma coisa os une: os planos de deixar de vender pelo iFood.
Hoje, o Buena Onda Burritos funciona só com delivery. Luise, aos poucos, tenta migrar seus clientes para seu aplicativo e site próprios, feitos com o MenuDino. Por lá, ela consegue vender mais barato, sem as taxas do iFood.
A estratégia esbarra em uma limitação imposta pelo próprio iFood: se ela envia algum material sobre seu delivery próprio nos pedidos que chegam pela plataforma, corre o risco de ser multada e perder ranqueamento.
Luise também quer aumentar o local do Buena Onda para receber seus clientes pessoalmente.
O atendimento no salão é um dos fatores em que Mário se apoia para atingir sua meta para 2022: sair do iFood.
Ele conta que o aplicativo já respondeu por 100% do seu faturamento; hoje, com a melhora na situação da pandemia, o movimento no local aumentou, e a plataforma representa algo entre 30% e 40%.
No Buena Onda de Luise, o iFood corresponde a uma porcentagem ainda menor das vendas: 20%, sendo que ela ainda não tem espaço para receber clientes. O segredo para isso é trabalhar a marca nas redes sociais, direcionar seus clientes para o aplicativo próprio e fidelizar os consumidores.
Mário quer testar um modelo de delivery com entregadores próprios, de bicicleta, para a região da Santa Cecília, no centro de São Paulo.
Ele menciona ainda o AppJusto, aplicativo de entregas com foco na responsabilidade social.
O AppJusto pretende pagar melhor os entregadores ao mesmo tempo que cobra taxas menores dos restaurantes. Além disso, a ideia é colocar entregadores e motoristas como sócios usando um modelo de crowdfunding.
O sócio do Generoso Burger critica a precarização dos entregadores do iFood. “Eles precisam fazer dezenas de entregas para ganhar uma grana. Eles vêm aqui e estão estressados, às vezes a gente está com uma fila grande e o cara quer pegar o dele logo. Isso atrapalha o movimento do salão.”
Outras empresas estão de olho neste segmento. Elas conhecem bem as queixas em relação ao iFood — e as estratégias para sair do app.
Renato Almeida, CEO da Consumer, diz que é possível ficar sem o iFood, mas o dono do restaurante precisa investir mais tempo e dinheiro, além de assumir mais responsabilidades.
Almeida conta que as taxas são a principal queixa dos restaurantes que procuram a Consumer. “Hoje, o iFood é um sócio novo que [o dono do restaurante] tem.”
A Consumer, companhia por trás do MenuDino, conta com uma ferramenta de compra de anúncios chamada ConsumerAds, que trabalha junto à ferramenta de propaganda do Google.
Quem também veio da gestão dos restaurantes para o delivery foi a KCMS. A empresa existe há 23 anos, e há 15 começou a desenvolver softwares, primeiro para supermercados, depois para restaurantes. Hoje, ela oferece sistemas para delivery e tem planos gratuitos para os restaurantes.
Chaves, CEO da KCMS, diz que, em alguns casos, os restaurantes que adotaram sua solução conseguiram diminuir as taxas pagas para os marketplaces de R$ 30 mil reais mensais para R$ 5 mil.
O executivo também bate na tecla da necessidade do marketing. “Na pandemia, a concorrência aumentou absurdamente. Um restaurante concorria com dez, 15 e passou a concorrer com 100”, comenta.
A Goomer é outra empresa que tenta “acolher” os descontentes do mercado.
Presente no setor desde 2014, com soluções de atendimento e gestão, ela deu seus primeiros passos no delivery em março de 2020, quando foram impostas as primeiras restrições para conter a COVID-19.
Em sete dias, a empresa criou uma solução com cardápio e pedidos online. Os itens eram compilados e enviados para o WhatsApp do restaurante. Mais de 200 mil negócios usaram a Goomer ao longo dos últimos dois anos, incluindo feirantes e pessoas que fazem doces e bolos em casa.
Felipe M. Lo Sardo, cofundador e CEO da Goomer, diz que mesmo no iFood os restaurantes precisam fazer marketing. “Todo mundo está no iFood, então o restaurante precisa aparecer, com frete grátis e cupons de desconto, que ele banca do bolso dele.”
A fidelização que Luise menciona também é destacada por Lo Sardo. Ele diz que, em média, 80% dos consumidores já são recorrentes. “É de cinco a sete vezes mais barato reter um cliente do que adquirir um novo”, diz o executivo.
A Goomer já tinha em seu portfólio tablets para garçons, totens para os consumidores e pedidos via QR Code. O delivery era, então, um caminho natural.
E, com todos esses processos digitalizados, o dono do restaurante pode conhecer melhor seu cliente, coisa que iFood e outros marketplaces não permitem. Tanto Luise quanto Mário reclamaram dessa falta de acesso aos dados de quem pede em seus restaurantes usando as plataformas.
Consumer, KCMS e Goomer têm caminhos parecidos: começaram com soluções para atendimento e gestão nos restaurantes e agora oferecem também produtos voltados para o delivery.
Mas não são só eles que querem um pedacinho do bolo.
Quem também está de olho é a Quiq, que foi notícia em julho de 2021 ao obter uma autorização do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) para concorrer com iFood e Rappi.
O Quiq nasceu de uma união entre o hub de tecnologia 4all e donas de restaurantes que você já deve ter visto em uma praça de alimentação perto da sua casa, como Outback, Giraffas, Rei do Mate, Pizza Hut, Montana Grill e Spoleto, além da Marfrig.
“Levamos uma proposta para players do setor justamente para viabilizar a estruturação de uma plataforma aberta para o mercado, que auxilia na digitalização da operação dos restaurantes em todo o Brasil”, diz Cristian Mairesse Cavalheiro, CEO do Quiq, em conversa com o Tecnoblog por e-mail.
“Nosso propósito é levar uma autonomia de gestão para o restaurante, possibilitando que ele possa administrar e organizar adequadamente todos os pedidos que chegam por diferentes deliveries, bem como sua própria operação de atendimento”, completa Cavalheiro.
Quem vem comendo pelas beiradas é a 99Food, da 99, mais famosa por seu serviço de transporte individual com motoristas particulares.
Se você mora em uma capital ou cidade grande e nunca viu a 99Food, saiba que não é por acaso. A empresa falou com o Tecnoblog também por e-mail e explicou seu plano.
“Nossa estratégia é iniciar nossas operações regionalmente, em cidades de pequeno e médio portes. Começamos pequenos para termos a certeza de que estamos entregando os melhores e mais variados produtos com a melhor qualidade e preço para nossos consumidores.”
99Food
Uma dessas cidades médias é justamente Ponta Grossa, onde Luise tem a Buena Onda Burritos. Ela conta que a empresa vem prometendo grandes atrativos, como taxas menores que o iFood por seis meses, mas experiências passadas com outras plataformas deixaram os donos de estabelecimentos receosos.
O 99Food também não trabalha com contratos de exclusividade, que é uma das grandes críticas feitas ao iFood. A 99 e outras empresas recorreram ao Cade para impedir esse tipo de acordo.
“Em junho de 2021, a 99Food se juntou à Rappi Brasil, ao Uber Eats e à Abrasel [Associação Brasileira de Bares e Restaurantes]. Levamos uma representação ao Cade, para que o órgão regulamente a atuação do iFood e impeça a imposição de barreiras ao mercado e ao crescimento de sua marca”, explica o braço de entregas de comida da 99.
Então estamos assim: o iFood domina mais de 80% dos pedidos de delivery dos marketplaces, a Uber saiu do mercado de entregas de restaurantes e várias empresas estão interessadas no setor. Vai ter espaço para todo mundo?
Nakamura diz que sim.
“As pessoas se esquecem que o mercado de delivery não é constituído apenas por iFood, Rappi e Uber Eats. Essas são apenas as principais empresas de um segmento do delivery, o segmento dos marketplaces nas cidades maiores, que funcionam como verdadeiras praças de alimentação.”
Dennis Nakamura, sócio do O Board, mentor de startups e ex-gestor do iFood
Para ele, há oportunidades a serem exploradas no mercado atual. “Uma empresa nunca conseguirá resolver todo tipo de questões relacionadas aos seus negócios, e onde há dor, há oportunidade. Poucos sabem, mas o iFood, Uber Eats, Rappi e outros possuem muitas falhas que os pequenos podem aproveitar.”
Lo Sardo, da Goomer, diz que o primeiro passo da digitalização do mercado foi feito pelos marketplaces, mas o caminho natural é que os estabelecimentos busquem plataformas para criar canais próprios de venda e conexões diretas com os clientes.
“São coisas diferentes. A gente precisa evoluir com a plataforma para não deixar que o marketplace coma o mercado como um todo, porque não é sustentável para os pequenos e médios negócios”, explica o CEO da Goomer.
Chaves, da KCMS, acredita que os restaurantes vão buscar uma segunda opção além do iFood, seja em outro marketplace, seja em uma plataforma própria.
Almeida, da Consumer, considera que o mercado é muito grande para ser engolido por uma só empresa. “Eu já fui muito assustado e ansioso de ver tantos players com tanto dinheiro, mas hoje eu tenho essa visão.”
Ele acha que nenhuma empresa conseguirá entregar todas as soluções que os restaurantes buscam, o que vai bem além do delivery, passando por gestão e marketing.
Outro ponto é a expansão do próprio mercado. Uma pesquisa realizada em 2021 pela 99Food identificou que 53% dos consumidores de delivery por aplicativo são das classes A e B, e outros 43% da classe C. Portanto, há “um enorme contingente de pessoas a se alcançar”, diz a empresa.
A leitura é parecida com a do Quiq. “Acreditamos que exista ainda um espaço a ser ocupado nos mais de 600 mil estabelecimentos somente em nosso país. Logo, é bastante factível que novos players de nicho irão ocupar uma certa relevância.”
Mário, do Generoso, espera que os próprios consumidores possam começar a mudar este cenário.
“Eu acho que à medida que os problemas do iFood começarem a aparecer e as pessoas começarem a desistir de usar o produto deles, vão começar a aparecer novas empresas. É o natural do capitalismo. A gente espera que sejam empresas que possam oferecer condições melhores.”
Mário Rabelo, sócio do Generoso Burger