Multa por baixar torrent no Brasil? Cuidado com os “copyright trolls”

Cerca de 15 mil brasileiros receberam e-mails de um grande estúdio de Hollywood exigindo pagamento de uma multa — mas especialistas afirmam que é preciso cautela

Pedro Knoth
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• Atualizado há 11 meses
O Tecnoblog investigou a fundo sobre e-mails que brasileiros vêm recebendo de um estúdio de Hollywood ao baixarem torrents de filmes (Imagem: Vitor Pádua/ Tecnolblog)

Usuários brasileiros estão recebendo notificações de multa por baixar torrents. Os e-mails vêm de um escritório de advocacia que representa um estúdio grande de Hollywood no Brasil, responsável por lançamentos como Rambo: Até o fim e Hellboy. Nas mensagens, há um alerta de que, caso não seja identificado o pagamento até a data de vencimento estipulada, o estúdio norte-americano deverá entrar na Justiça contra os usuários — e avisa: a possibilidade de indenização a ser paga pode chegar a R$ 60 mil.

Mas não se assuste: especialistas dizem que é necessário ter cautela antes de depositar qualquer dinheiro, para não alimentar os “copyright trolls”, ou trolls de direitos autorais. Para entender melhor essa história, o Tecnoblog investigou o caso mais a fundo — os detalhes, você acompanha nas linhas a seguir.

É multa ou golpe?

Uma dessas notificações do estúdio de Hollywood foi recebida pelo usuário Leopaulista17, que pediu conselhos de como lidar com a situação em um fórum do Reddit.

O brasileiro foi autuado pelo Guerra Associados Advogados por baixar o filme Rambo: Até o fim, que estreou em 2019. O escritório de advocacia com sede no Rio e em Porto Alegre (RS) representa os estúdios da Millennium Media desde 2020. A produtora é dona de mais obras conhecidas, como Hellboy e Invasão do Serviço Secreto.

Usuários levantaram suspeitas de que a notificação poderia ser um golpe de phishing — quando o golpista usa links para a vítima entregar informações pessoais — bem elaborado. Mas, ao entrar em contato com o Guerra Advogados Associados, o Tecnoblog confirmou que o escritório de fato é o autor do e-mail.

Em uma procuração presente no site aviso.net, usado para negociar as indenizações recebidas pelo Guerra Advogados, o estúdio de Hollywood escolheu a firma para agir em seu nome no Brasil “apenas em conexão com assuntos antipirataria”. O escritório deve defender a propriedade intelectual da empresa conforme a Lei de Direitos Autorais (Lei nº 9.610/1998).

Os advogados devem agir no caso da violação de direitos autorais dos filmes:

  • Hellboy;
  • Rambo: até o fim;
  • Posto de combate;
  • Fúria em alto mar;
  • Invasão do Serviço Secreto;
  • Dupla Explosiva;
  • Dupla Explosiva 2 — E a Primeira-Dama do Crime;
  • Jolt;
  • A Profissional;
  • Anna — O Perigo tem Nome;
  • Gong Li Project;
  • e The Asset

A procuração da Millennium Media garante ao Guerra Advogados autorização para negociar indenizações, em acordos que dizem respeito a infrações cometidas “dentro e fora da Corte”. Eles podem ser concluídos antes que policiais, promotores ou outras autoridades interfiram no caso, a fim de coletar fundos para o estúdio.

No e-mail enviado ao usuário do Reddit, os advogados deixam claro que a medida é extrajudicial, ou seja, é feita fora do âmbito processual da Justiça. Há a possibilidade de negociar o pagamento, desde que seja acima do valor mínimo de R$ 250. Mas está escrito que essa “é uma liberalidade que lhe é oferecida uma única vez e por prazo determinado pela titular dos direitos autorais”.

Caso o usuário não realize o pagamento 15 dias após a notificação, o valor mínimo da indenização aumenta em 50%, para R$ 375. Se novamente não houver resposta por mais 15 dias, será necessário pagar o dobro.

Mas a notificação não explica em detalhes do que acontece se o usuário ignorá-la por completo. A página do aviso.net afirma que, depois dos 30 dias de prazo para pagamento, o caso terá o envolvimento direto dos advogados da Millennium Media. A partir da análise das infrações do usuário, os representantes do estúdio enviam uma intimação pelos correios para que seja paga uma multa de R$ 3 mil.

Caso essa nova indenização seja ignorada, o estúdio pode processar o usuário. Ao levar o caso ao Judiciário, a produtora pode exigir o pagamento de até R$ 60 mil. A multa média em processos desse tipo é R$ 48 mil, como informa a página aviso.net.

Tecnologia P2P é usada para calcular multa

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Estúdio de Hollywood por trás dos filmes de Rambo: Até o fim e Hellboy processa brasileiros por baixarem torrents (Imagem: k3anan/ Flickr)

De acordo com o site, o cálculo feito para chegar ao valor da indenização é feito com base não apenas no download de torrent feito pelo próprio usuário, mas também por outros que usaram seu computador como servidor para baixar o arquivo, em conexão P2P.

Como cada licença cobrada pelo estúdio por exibição do filme custa R$ 250, os advogados estipulam que outras 30 pessoas baixam filmes ilegais a partir de um único download. Em uma semana, esse prejuízo chega a R$ 41 mil para os estúdios.

A conexão P2P é comum aos arquivos de torrent, e geralmente habilitada por padrão para que mais usuários se conectem automaticamente ao conteúdo presentes na aplicação executava pelo dispositivo do usuário. Pelo P2P, é criada uma rede de download e upload, aumentando a possibilidade de se obter um arquivo.

Pedro Lana, advogado e pesquisador do GEDAI (Grupo de Estudos em Direito Autoral e Industrial) da UFPR, diz que a presença da conexão P2P não significa que o usuário está ativamente distribuindo o arquivo pirata para outros que se conectam ao seu computador. Segundo ele, a forma como o estúdio de Hollywood — considerado um copyright troll — usa a conexão P2P para aumentar a multa a ser paga na Justiça é forçada e não encontra respaldo legal:

“Os notificantes não sabem quantas pessoas tiveram acesso ao arquivo, quanto por cento do arquivo foi baixado a partir daquela conexão específica e nem se essa função não foi desabilitada. Este é mais um dos argumentos que aparece com o único intuito de criar um clima de medo e fazer parecer que a indenização cabível é muito maior do que ela realmente seria.”

15 mil brasileiros notificados pelo estúdio de Hollywood

O usuário contou no post do Reddit que recebeu o e-mail no dia 10 de janeiro de 2022, mas ele não está sozinho. No Twitter, outras duas usuárias dizem ter recebido outras notificações da Millennium Media; ambas chegaram no dia 3 do mesmo mês.

O Guerra Advogados Associados confirmou ao Tecnoblog que, entre 2021 e 10 de janeiro de 2022, aproximadamente 15 mil brasileiros receberam e-mails de notificação do estúdio de Hollywood por pirataria.

O autor do post no Reddit nota que a notificação extrajudicial enviada em nome do estúdio de Hollywood continha alguns de seus dados pessoais, como endereço completo, IP, data e hora do download do torrent pirata e mais o provedor de sinal de sua casa — no caso, a NET Virtua.

Diz o e-mail enviado pelo escritório de advocacia:

“Todos os filmes lançados pela Rambo V Productions, Inc. contêm uma funcionalidade de monitoramento de atividades de download e compartilhamento das mesmas. Através desta ferramenta forense, o uso de torrent para realizar o download e o compartilhamento de cópias não licenciadas é imediatamente detectado, sendo possível determinar o endereço de IP da máquina, o provedor de acesso usado, a porta de origem e a data e horário exatos em que tais atividades ocorreram.”

Para obter os dados pessoais de quem baixou torrents, consta no site aviso.net que o estúdio entrou com uma medida contra o provedor de rede para obter informações relacionadas a todos os IPs que infringiram os direitos autorais da Millennium.

O Tecnoblog teve acesso a duas liminares na Justiça, protocoladas por mais de uma empresa que representa os interesses comerciais do estúdio de Hollywood: a Process Management Ltd. As ações — ambas de 2020 — são para “produção antecipada de prova”. Ou seja, quando a parte envolvida alega que não pode esperar para a produção de evidências contra os acusados.

A Claro, proprietária da NET Virtua, é alvo das duas medidas judiciais no TJ-SP (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo). Nos dois casos, os juízes favoreceram a produtora de Hollywood, obrigando a operadora a manter ativos todos os dados relacionados aos IPs que piratearam filmes como Hellboy, Invasão ao Serviço Secreto, Rambo: Até o fim, entre outros.

Os endereços de rede dos usuários que baixaram filmes ilegalmente aparecem em uma planilha de Google Drive, anexada ao processo, que corre em segredo de Justiça.

A operadora também foi obrigada a fornecer à Millennium Media os dados pessoais dos clientes que baixaram os filmes ilegalmente. À Claro, foi exigida a entrega de CPF ou CNPJ, nome completo, endereço físico, e-mail e telefone, “entre outros dados” de quem cometeu a infração aos direitos autorais da Millennium Media.

Especialistas veem “exagero” na obtenção de dados

Rambo: Até o fim, da produtora Millennium Media; filme é motivo de notificação antipirataria (Imagem: YouTube/ Ingresso.com)

Questionado se há um exagero na demanda pelos dados pessoais desses clientes, o Guerra Advogados Associados afirma:

“Os dados fornecidos em cumprimento de ordens judiciais são aqueles absolutamente necessários para a identificação do assinante e para que a titular do direito possa empreender as medidas extrajudiciais (notificações) e, eventualmente, judiciais (ações indenizatórias de natureza civil, por exemplo).”

Mas o IDEC (Instituto Brasileiro de Defesa ao Consumidor) diz que há excesso na liminar protocolada pelo estúdio, ao que chamou . “O escritório visam obter uma série de informações pessoais excessivas, inclusive perfis em redes sociais. Além disso, todo esse procedimento de obtenção de informações pessoais dos usuários é cercado de possíveis ilegalidades”, disse o instituto em nota à reportagem.

Para o Partido Pirata, que assume instâncias de defesa aos consumidores, alguns desses IPs podem não ter baixado torrents de filmes da Millennium:

“É sempre provável que uma parcela desses alvos sequer tenha cometido alguma infração, e isso é usado para estender a mácula a todas as pessoas da lista, como um viés de confirmação. O sistema fornece muitos falsos positivos, mas ao mesmo tempo, joga para o notificado a peteca de provar sua inocência.”

Um dos pedidos judiciais também teve como alvo outra grande operadora brasileira: a TIM. Em dezembro de 2020, a juíza de Direito Adriana Marilda Negrão determinou que a provedora fornecesse dados pessoais atrelados aos IPs que baixaram filmes ilegalmente.

A advogada Caroline Dinucci, especialista em direito digital, afirma que o procedimento adotado para identificar os donos de IPs na Justiça é legítimo:

“O que acontece: há uma concepção problemática de que a internet é uma terra sem lei. Mas o Marco Civil da Internet impõe obrigações aos provedores. Tudo que nós fazemos deixa um rastro. Temos um endereço de IP e, na hora de tomar providências, ele pode ser exigido através de uma liminar na Justiça. A princípio, vejo isso como algo legítimo.”

Dinucci, sócia da Dinucci-Barreto Advogados, explica que apesar de a liminar ser de 2020, o escritório de advocacia pode enviar e-mails pedindo indenizações, já que estas são extrajudiciais. Contudo, a produtora só pode processar o usuário na Justiça em até 3 anos a partir da entrada de processo contra a Claro e a TIM.

Já Tania Liberman, advogada da área de Tecnologia e Proteção de Dados da Cescon Barrieu, diz que a Millennium Media deve avisar ao usuário que o torrent de seu filme é rastreado por uma ferramenta forense.

O anúncio deve aparecer antes que a pessoa baixe o conteúdo, e precisa conter menção ao crime de pirataria. “A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) determina que toda empresa deixe claro o uso de software e aplicação para captar alguns dados do titular. Se o estúdio avisa isso antes de baixar o torrent, ele está autorizado a usar esses dados”, diz Liberman.

Mas o Guerra Advogados não sabe se o usuário é avisado sobre a ferramenta forense. “Mas certamente há o aviso de que baixar o filme sem autorização é uma violação de direitos autorais”, comentou a firma.

Procuradas, TIM e Claro informaram ao Tecnoblog que não comentam decisões judiciais. Nas duas decisões, as informações dos clientes deveriam ser fornecidas em formato Excel, o que dá uma dimensão dos brasileiros notificados.

Afinal, pagar ou não pagar a multa?

Produtos piratas (Imagem: Peter Dutton/Flickr)
Pirataria (Imagem: Peter Dutton/Flickr)

Alguns filmes da Millenium que são objetos das ações antipirataria foram produzidos e lançados há dois anos. Rambo: Até o fim, por exemplo, é de 2019 e está disponível no streaming do Telecine, que logo deve migrar todo seu conteúdo ao Globoplay.

O prejuízo que a Millennium tenta recuperar com as notificações extrajudiciais vem a partir da perda de receita com assinaturas de streaming e outras plataformas que oferecem o filme para alugar ou comprar. Contudo, especialistas veem os e-mails que pedem pagamento pelo download ilegal de filmes como inefetivos no combate à pirataria.

Na avaliação de Pedro Lana, na verdade o principal objetivo dos estúdios é obter dinheiro a partir de uma tática de intimidação.

O pesquisador da UFPR afirma que é necessário sancionar os responsáveis pela criação de ferramentas de compartilhamento ilegal de filmes e séries, que são os maiores violadores de direitos, e não os usuários comuns. As empresas responsáveis por esses avisos extrajudiciais são chamadas de “copyright trolls”, ou trolls de direitos autorais.

O site do Guerra Advogados Associados afirma que as notificações podem ter um caráter educacional, pois o usuário que baixou o torrent pode reconhecer que violou direitos autorais, e não repetir o download sem autorização.

Mas Pedro Lana rebate:

“É preciso deixar claro: o intuito dos trolls de direitos autorais é o lucro. Ponto. Não considero existir um pingo de verdade na alegação de um intuito primariamente pedagógico, como afirmam o site e as notificações. Se fosse assim, seguiriam o modelo utilizado em vários outros países do mundo, em que as pessoas são antes notificadas para cessarem as violações e, caso reincidam, aí sim serão sancionadas financeiramente, escalonando as punições com novas infrações.”

“Eu não imagino que essa tática tenha muito sucesso. Acho que muita gente vai olhar e jogar [o e-mail] no lixo. Podem até parar de baixar filmes, mas não vão pagar as multas”, esclarece Tania Liberman. “Mas é bom deixar claro: a pirataria pode deixar os produtos ainda mais caros, porque as produtoras podem incluir no ingresso o prejuízo com pirataria no ingresso.”

Por outro lado, o Partido Pirata culpa a destribuição desigual de recursos como principal motivo que leva brasileiros a piratearem filmes, séries e músicas:

“A internet trouxe essa ideia de uma infinita integração entre as pessoas, ninguém quer ficar de fora do assunto do momento, e se os meios forem excludentes, as pessoas acabam buscando outras formas. Tornar a cultura acessível e simples para o usuário é a forma mais efetiva de combater a pirataria.”

Aos usuários que receberam o e-mail do Guerra Advogados Associados pedindo pelo pagamento de indenização, o IDEC recomenda cautela.

A pessoa deve ignorar o pedido extrajudicial e não entrar em contato com o número ou endereço eletrônico que aparecem nas mensagens. “Os fundamentos jurídicos e técnicos são dúbios. É importante que o consumidor não se intimide nem siga qualquer instrução destas notificações”, diz o IDEC.

Por fim, especialistas consultados pelo Tecnoblog afirmam que não há fundamento jurídico para que a Millenium Media, por meio do Guerra Advogados, processe os clientes que baixaram torrents de seus filmes. Eles defendem que a ausência de fins lucrativos — o usuário que não ganha dinheiro comercializando o arquivo — isentam a pessoa de culpa.

Em nota, o Guerra Advogados Associados diz que espera que os e-mails exigindo indenização por violação de direitos autorais reduza o número de usuários que continuem baixando torrents.

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Pedro Knoth

Pedro Knoth

Ex-autor

Pedro Knoth é jornalista e cursa pós-graduação em jornalismo investigativo pelo IDP, de Brasília. Foi autor no Tecnoblog cobrindo assuntos relacionados à legislação, empresas de tecnologia, dados e finanças entre 2021 e 2022. É usuário ávido de iPhone e Mac, e também estuda Python.

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