As polêmicas do PL das fake news, que deve se arrastar no Congresso
Com tema amplo e pontos controversos, aprovação do PL das fake news deve levar mais tempo que o desejado por parlamentares
Com tema amplo e pontos controversos, aprovação do PL das fake news deve levar mais tempo que o desejado por parlamentares
A decisão do Senado de adiar a votação do chamado PL das fake news atendeu a pedidos de parlamentares, ativistas de direitos digitais e empresas que podem ser afetadas com a medida. A discussão esbarrou nos possíveis riscos à liberdade de expressão que surgiriam com a aprovação da proposta, que poderia incluir, entre outros pontos, a exigência de CPF para usuários se cadastrarem em redes sociais.
Essa medida aparece no texto preliminar do relator da proposta, senador Angelo Coronel (PSD-BA). O documento, divulgado pelo Poder360, seria votado na terça-feira (2), mas o planejamento foi adiado a pedido dos senadores. Segundo O Globo, Coronel afirmou que pretende apresentar uma nova versão do texto, sem a regra da apresentação de documentos dos usuários.
O PL das fake news (projeto de lei 2630/2020) propõe, oficialmente, a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência Digital na Internet. Ele foi elaborado pelo senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) em conjunto com a deputada Tabata Amaral (PDT-SP) e o deputado Felipe Rigoni (PSB-ES), que apresentaram a mesma proposta na Câmara.
Para a presidente do IP.rec (Instituto de Pesquisa em Direito e Tecnologia do Recife), Raquel Saraiva, o relatório de Coronel tem pouca convergência com as propostas de especialistas. Em entrevista ao Tecnoblog, ela criticou o foco na criminalização, o mecanismo que criaria um sistema de pontuação de contas e a exigência para usuários informarem RG, CPF e comprovante de residência para criarem um perfil.
Segundo ela, o relatório preliminar “burocratiza o processo e ainda torna obrigatória a identificação da pessoa, ou seja, ele não está dando o menor valor, por exemplo, ao direito ao pseudônimo”. Raquel afirma ainda que “a identificação já é possível com o Marco Civil da Internet. Não tem a menor necessidade de se fazer uma identificação nesse grau de detalhes que eles querem”.
Já o professor titular da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e conselheiro eleito do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), Marcos Dantas, questiona o risco de responsabilizar redes sociais e aplicativos de mensagens por violações cometidas pelos usuários. A primeira versão apresentada por Coronel prevê sanções como suspensão da plataforma no Brasil e multa de até R$ 10 bilhões.
“O ataque pessoal é um problema que a legislação já resolve há décadas. A injúria, a calúnia, a difamação, isso é bem tipificado na lei”, pontua Marcos. “A rede não tem nada a ver com isso. Se eu escrevo no WhatsApp uma acusação contra alguém, o WhatsApp não tem culpa do que eu escrevi. Quem escreveu foi eu, ele é um mero transportador”.
O senador Angelo Coronel também adiantou ao Globo que incluirá no projeto um trecho que proíbe anúncios de órgãos públicos em sites que publicam notícias falsas. Além desta mudança, destacamos abaixo outros pontos que podem fazer com que a proposta precise de mais tempo que o previsto pelos parlamentares para ser votada.
Um dos pontos controversos da primeira versão do relatório é o que exige a documentação de usuários de redes sociais e aplicativos de mensagens. Segundo Coronel, essa regra deverá ser retirada da versão oficial. O senador, porém, adiantou que vai manter a exigência para a apresentação de nome, endereço e CPF durante a compra de um chip pré-pago. Ela já está prevista em uma lei de 2003, mas o texto do parlamentar pode restringir a venda de chips a estabelecimentos físicos, como lojas e bancas de jornal.
Outro ponto que merece atenção no relatório de Coronel é o que permitiria que os dados cadastrados em redes sociais e aplicativos de mensagens fosse solicitado por autoridades. De acordo com o documento, delegados e membros do Ministério Público poderiam pedir as informações para as plataformas “caso haja indício de prática de crime por intermédio de aplicação de internet”.
O relatório da PL das fake news ainda proíbe o uso de contas inautênticas e de “disseminadores artificiais” — os conhecidos robôs — que não estejam identificados. O texto também exige que publicidade e conteúdo manipulado sejam identificados como tais.
Os parlamentares também devem discutir um sistema de pontuação de contas em redes sociais. Com a regra, as plataformas seriam obrigadas a manter um sistema que levaria em consideração critérios como tempo desde a abertura da conta, manifestações dos demais usuários e histórico de publicações. A partir da nota, que ficaria pública no perfil, usuários poderiam ocultar perfis com avaliação ruim.
A proposta é criticada por grupos como a Coalizão Direitos na Rede, que inclui entidades como o IP.rec e a comparou com um episódio de Black Mirror. “O texto cria um sistema em que pessoas darão notas às outras e isso gerará prejuízos a quem for ‘mal classificado’. Os critérios de classificação serão definidos pelas plataformas, abrindo espaço para todo tipo de abusos”, afirma o grupo.
O relatório também prevê a criação a Autoridade de Transparência da Comunicação Digital, um órgão auxiliar ao Congresso que, entre outras tarefas, analisaria relatórios das plataformas com medidas adotadas contra notícias falsas.
Nesses documentos, as empresas apresentariam dados como quantidade de publicações e contas inautênticas removidas, além de informações sobre o alcance que conteúdos verificados como desinformação tiveram antes de serem removidos.
A nova entidade teria 11 membros com mandatos de dois anos cada e possibilidade de reeleição. A Autoridade de Transparência da Comunicação Digital contaria com representantes de diversos setores, distribuídos da seguinte forma:
A autoridade ainda teria a prerrogativa de acionar o Ministério Público e a Justiça Eleitoral quando reunisse indícios de violação do Código Penal ou do Código Eleitoral. Além disso, o grupo poderia abrir processo administrativo e aplicar as sanções previstas para quem violasse a lei.
Segundo a versão preliminar do relatório da PL das fake news, as plataformas que descumprirem a lei estarão sujeitas a sanções que vão de advertência à suspensão temporária das atividades no Brasil. O texto prevê ainda multa de até R$ 10 milhões, sanção que seria definida conforme a gravidade da violação e a capacidade econômica da empresa.
O documento também estabelece o crime contra honra pela internet, que poderia levar a pena de três a seis anos de prisão. Além disso, há a inclusão de possibilidade de pena de um a cinco anos de prisão para quem financiar grupos para promover crimes contra a honra e discursos de ódio nas redes sociais e em aplicativos de mensagens.
Na sessão virtual de terça-feira (2), em que ficou definido o adiamento da votação da proposta, o senador Angelo Coronel garantiu que não são verdadeiras as afirmações de que os parlamentares pretendem criar uma espécie de censura nas redes sociais. “O que queremos é acabar com ações covardes de gente que se esconde atrás de perfis falsos para espalhar ofensas” (a fala está disponível neste link, a partir de 18min30).
O relator do projeto de lei também citou uma preocupação em defender a imagem de agentes públicos. “Quero fazer um relatório que atenda a todos os segmentos da sociedade, mas o principal: proteger a nossa honra”, continuou, em discurso aos seus pares. “Porque honra atacada, jamais será reparada”.
Antes dele, o autor da proposta, senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), procurou deixar claro que ela não é partidária. “Este não é um projeto de lei contra o presidente Bolsonaro e seu grupo ou contra os adversários do presidente. Este é um projeto de lei contra a mentira. Este é um projeto de lei contra o uso criminoso de ferramentas que estão disponíveis na internet”, continuou.
Além de defender que o PL das fake news não apresenta risco à liberdade de expressão, Vieira afirmou que a proposta se concentra no uso de robôs para disseminar mentiras e ataques. “No projeto de lei, a gente deixa bem claro que esse tipo de uso automatizado de contas passa a ser necessariamente identificado. Ou seja, pode ter robô, mas vai ter que estar bem claro, identificado pro usuário que ele está falando com um robô e que alguém está pagando por isso”, explicou.
As mudanças apresentadas pelo relator foram criticadas pela deputada Tabata Amaral (PDT-SP) e pelo deputado Felipe Rigoni (PSB-ES), que classificaram o relatório como um retrocesso. “Ele não incorpora sugestões da nossa consulta pública e incluiu pontos na direção oposta do que defendemos”, afirmou a parlamentar no Twitter — Rigoni publicou uma mensagem semelhante em seu perfil.
O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), afirmou que trabalha com o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP) para chegar a um consenso sobre o texto. “A sociedade não quer mais fake news, mas quer liberdade para divulgar suas informações verdadeiras. A gente tem que saber separar os limites”, afirmou na quinta-feira (4).
No início da semana, uma pesquisa do Ibope encomendada pela Avaaz apontou que 90% dos brasileiros defendem a criação de uma lei que obrigue redes sociais a protegerem a sociedade de notícias falsas. No levantamento, 50% dos entrevistados se declararam muito preocupados com desinformação, enquanto 26% afirmaram estar um pouco preocupados e 22% disseram não estar preocupados.