Afinal, por que grandes marcas estão boicotando o Facebook?
Centenas de marcas decidiram deixar de anunciar no Facebook em protesto contra o discurso de ódio. O que explica esse boicote?
Centenas de marcas decidiram deixar de anunciar no Facebook em protesto contra o discurso de ódio. O que explica esse boicote?
Você já imaginou que um dia Coca-Cola e Pepsi estariam unidas? Ou Adidas e Puma? Essas marcas, assim como centenas de outras, aderiram recentemente ao Stop Hate For Profit (“Pare o ódio pelo lucro”, em tradução livre), movimento de boicote publicitário que visa forçar o Facebook a agir energicamente para combater o discurso de ódio em suas redes sociais.
Plataformas como Twitter e YouTube também são afetadas pelo movimento, mas o Facebook é, de longe, o alvo principal. Um número crescente de empresas — grande parte com atuação global — vem suspendendo a exibição de anúncios na plataforma no intuito de protestar contra o que seria uma estratégia da companhia de Mark Zuckerberg para lucrar com conteúdo nocivo.
Se de um lado o boicote traz à tona questões importantes, por outro, nos deixa cercados de dúvidas: por que grandes marcas aderiram a esse movimento? Quando o Stop Hate For Profit teve início? Será que teremos algo parecido no Brasil? O Facebook é mesmo o vilão dessa história? As próximas linhas irão te ajudar a entender o que está acontecendo.
O Facebook atua em vários segmentos, mas somente um mantém as suas operações: o de publicidade. Pequenos e médios negócios respondem por uma fatia generosa da receita com anúncios, mas a parte mais expressiva do que a companhia fatura advém de grandes anunciantes. Boa parte deles se envolveu com esta “revolta”.
Estamos falando de gigantes como Unilever (que detém dezenas de marcas ao redor do mundo, como Omo, Kibon e Maizena no Brasil), Coca-Cola, Ford, Adidas, Starbucks, Microsoft, Pfizer, Mozilla, Vans, SAP e centenas de outras — em 1º de julho, o grupo Sleeping Giants revelou no Twitter que 530 marcas tinham aderido ao #StopHateForProfit até aquela data.
Apesar de o movimento ter ganhado força na última semana de junho, o boicote ao Facebook começou oficialmente um pouco antes, em 17 de junho. A The North Face, uma das primeiras marcas a aderir ao movimento, comunicou a sua participação em 19 de junho em um tweet com os dizeres “We’re in. We’re Out” (“Nós estamos dentro. Nós estamos fora”).
A mensagem também contém o link www.stophateforprofit.org, que leva ao site oficial da companha. O site é mantido pela ADL — Anti-Defamation League (Liga Antidifamação) —, ONG centenária com sede nos Estados Unidos que combate o antissemitismo e outras formas de intolerância.
Ao lado da ADL estão grupos como Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor (NAACP, na sigla em inglês), Free Press (ONG americana que luta pela liberdade de imprensa), Common Sense (ONG focada em educação para crianças) e o já mencionado Sleeping Giants (movimento americano que combate discursos de ódio e notícias falsas).
Identificada com a hashtag #StopHateforProfit, a companha foi iniciada com o Facebook aparecendo como alvo declarado. É um movimento de “basta”: basicamente, os mencionados grupos exigem que a companhia adote medidas para frear a desinformação e, sobretudo, discursos de ódio na rede social.
O entendimento desses grupos é o de que, embora o Facebook tenha anunciado políticas contra esses problemas nos últimos anos, na prática, pouca coisa mudou, presumivelmente porque, apesar dos pesares, a companhia lucra deixando as coisas como estão.
O Facebook já sofreu várias campanhas de boicote, como a #deletefacebook, promovida em 2018 após o escândalo Cambridge Analytica. Mas, como a própria hashtag sugere, essas campanhas incentivavam o abandono da rede social pelos usuários. Agora é diferente: a Stop Hate For Profit mira para os cofres da empresa.
É uma abordagem perspicaz. A linha de pensamento é a de, se as campanhas anteriores para mudanças no Facebook não tiveram êxito ou foram insuficientes, a alternativa é bater onde dói mais: o bolso. Os organizadores do movimento planejaram, desde o início, trazer para o boicote empresas que anunciam ou podem anunciar na rede social:
Pedimos às empresas para pausar temporariamente a publicidade no Facebook e no Instagram para forçar Mark Zuckerberg a abordar os efeitos que o Facebook vem tendo sobre a sociedade.
O movimento começou tímido, mas logo ganhou escala, especialmente na última semana de junho. Na primeira olhada, pode parecer que as marcas simplesmente resolveram unir forças e iniciar a campanha por elas mesmas, mas não foi isso o que aconteceu. Na verdade, uma empresa aderiu, depois outra, e outra, e o assunto foi gerando buzz.
De repente, ficou parecendo que, à sombra da crescente comoção popular, fazer parte do movimento constitui uma estratégia importante para as grandes marcas, afinal, a campanha Stop Hate For Profit surge na esteira de questões importantes que estão em alta, como o problemas das notícias falsas em eleições e os levantes contra o racismo estrutural que surgiu após a morte de George Floyd.
Isso quer dizer que as marcas entraram nessa por puro marketing? Essa possibilidade existe, mas, de modo geral, não é bem assim. A verdade é que existe uma demanda para que, dentro de certos limites, marcas se posicionem a respeito de questões sociais ou mesmo políticas.
Neste cenário em específico, o boicote envolve diretamente companhias gigantes por elas serem grandes anunciantes na mídia online. Como a campanha defende causas importantes — o combate ao discurso de ódio e à desinformação, essencialmente — o posicionamento a favor do movimento acaba sendo mandatório para muitas empresas, até para dar seguimento ao código de ética que cada uma segue.
De todo modo, Fernando Souza, consultor e professor de negócios digitais, marketing e mídias sociais, diz em entrevista ao Tecnoblog que observar a atuação da marca antes, durante e depois da campanha pode indicar se a empresa abraçou a ideia por interesse próprio: “para marcas que já tinham certa atuação em ativismo ou apoiado causas, é bem provável que elas tenham uma chance menor de estarem nessa por modismo ou jogada de marketing”.
O boicote começou nos Estados Unidos e será predominante por lá até o fim. Mas, será que poderemos nos deparar com uma movimentação semelhante no Brasil? Os especialistas consultados pelo Tecnoblog apontam que, ainda que em escala menor, isso é possível, por duas razões.
Fernando Souza diz que a primeira é o fato de os brasileiros, de modo geral, terem um histórico de envolvimento com causas globais e, muitas vezes, esse engajamento acaba refletindo na atuação de empresas.
Além disso, muitas companhias americanas têm atuação global e, portanto, entendem que devem interromper anúncios no Facebook como um todo, não só no conteúdo que aparece para usuários americanos da rede social.
Para Fernando Kanarski, consultor especialista em marketing digital, a possibilidade de marcas brasileiras se mobilizarem também existe: “dentre os meus clientes, alguns pequenos já têm manifestado interesse em aderir ao movimento, então é uma questão de tempo e, principalmente, maior divulgação e adesão de mais marcas americanas para as coisas andarem no Brasil”.
Mas, se no fim das contas empresas brasileiras ficarem alheias ao assunto, o estrago estará feito mesmo assim: o boicote tem tido repercussão global, até porque estamos falando de uma rede social que têm atuação em praticamente o mundo todo.
Um exemplo que ilustra quão pouco relevantes são as fronteiras em situações como esta vem da Ben & Jerry’s, cuja unidade brasileira se pronunciou sobre o assunto em seu próprio site: “sabemos o quanto é importante apoiar um movimento como esse e, seguindo o #StopHateForProfit, em julho pausamos as mídias pagas nas plataformas Facebook e Instagram”.
Na internet, o mercado de publicidade é dominado por duas empresas: Facebook e Google. A primeira por causa da força de suas redes sociais: Facebook, Instagram, Facebook Messenger e WhatsApp alcançam, juntos, 3 bilhões de usuários ativos por mês.
Já o Google exibe anúncios em seus resultados de busca, em aplicativos móveis e em milhões de sites por meio de plataformas como Google Ads, AdSense e AdMob, além de faturar alto com anúncios no YouTube.
Via de regra, as empresas montam equipes para lidar com veiculação de anúncios em ambos os universos. Essa é uma das razões pelas quais o mercado como um todo pode ser afetado, apesar de o alvo do boicote ser o ecossistema do Facebook. Prova disso é que a pausa em anúncios já respinga em plataformas como Twitter e YouTube.
Porém, são pequenas as chances de nos depararmos com uma grande crise no mercado de publicidade online. Kanarski sinaliza que é mais provável que as redes de anúncios se adaptem, tanto quanto possível, aos pedidos dos grandes anunciantes:
Assim como o boicote ao Youtube em 2017 resultou em maior controle por parte do Google quanto ao conteúdo publicado na ferramenta, além de mais autonomia para os anunciantes escolherem onde aparecer, este movimento pode resultar em melhorias no Facebook e até no próprio Google.
Essa possível adaptação não significa, necessariamente, que todas as exigências do protesto serão atendidas, até porque elas são numerosas. A campanha Stop Hate For Profit faz ao Facebook “recomendações” como estas:
De certa forma, algumas dessas “recomendações” já são atendidas pelo Facebook. A empresa já tem gente especializada em revisar produtos e políticas de conteúdo, bem como disponibiliza canais para denúncias de violação de regras, por exemplo (se esses canais funcionam ou não, é outra história).
Outras reivindicações, no entanto, são mais complicadas por causa da quantidade monstruosa de usuários que o Facebook têm: é tanta gente gerando conteúdo que até o mais eficaz dos algoritmos pode deixar grupos, páginas ou postagens que violam regras passarem despercebidas pelo processo de filtragem.
É claro que esse tipo de dificuldade não isenta o Facebook do trabalho de coibir conteúdo nocivo. E se havia essa linha de pensamento por lá, talvez o boicote consiga mudar essa postura: o recado que as grandes empresas transmitem com o movimento é, basicamente, o de que elas não querem que suas marcas apareçam ao lado de discursos de ódio ou notícias falsas.
Talvez seja por isso que, em 26 de junho, o próprio Mark Zuckerberg anunciou uma série de alterações nas políticas do Facebook. Ele diz que as mudanças têm relação com as promessas de revisão de políticas feitas no início do mesmo mês para deixar a rede social preparada para as eleições de 2020 nos Estados Unidos, mas é muita coincidência o anúncio ser feito durante o auge do boicote.
Seja como for, uma das mudanças reveladas por Zuckerberg diz respeito justamente ao discurso de ódio:
Investimos bastante em sistemas de inteligência artificial e revisores humanos para, agora, podermos identificar quase 90% do discurso de ódio. (…) Estamos expandindo nossa política de anúncios [publicitários] para proibir afirmações de que pessoas de uma raça, etnia, origem, afiliação religiosa, casta, orientação sexual, identidade de gênero ou em situação de imigração sejam uma ameaça à integridade física, saúde ou sobrevivência de outros indivíduos.
Não foi só Zuckerberg que se manifestou. Nick Clegg, vice-presidente global de políticas públicas do Facebook diz que, ao contrário do que prega o movimento, a companhia não lucra com o ódio:
O Facebook recebeu muitas críticas nas últimas semanas após a decisão de permitir que postagens controversas do presidente Trump permaneçam na plataforma (…). Eu vou ser claro: o Facebook não lucra com o ódio. Bilhões de pessoas usam o Facebook e o Instagram por terem boas experiências — elas não querem ver conteúdo odioso, nossos anunciantes tampouco querem vê-lo e nós também não.
A Bloomberg estima que o boicote já fez Zuckerberg perder mais de US$ 7 bilhões. Mas é prematuro achar que essa situação está gerando pânico dentro da companhia. A razão é uma só: o Facebook sabe a força que tem.
Repare que, a despeito do boicote de anúncios, as empresas não falam em abandonar o serviço. Isso porque, como destaca o consultor Fernando Souza, muitas marcas, principalmente ligadas ao varejo, precisam da rede social.
“Uma grande quantidade de empresas que aderiram ao movimento são indústrias”, complementa Souza em alusão ao fato de que, para várias dessas companhias, redes sociais não são tão importantes assim, situação que dá mais liberdade para que elas participem do movimento.
Levemos em conta também que a adesão segue abordagens diferentes. Algumas companhias paralisaram anúncios nos serviços do Facebook por tempo indeterminado. Outras, apenas durante o mês de julho. Também há aquelas que pausaram anúncios, mas não aderiram oficialmente ao Stop Hate For Profit, a exemplo da Coca-Cola.
O Facebook tem tanto dinheiro em caixa que, para as suas estruturas serem gravemente abaladas, a campanha teria que durar mais tempo ou ter adesão muito maior. A turma de Zuckerberg sabe que, para muitas empresas, isso está fora de cogitação, afinal, os usuários — consumidores, neste contexto — continuam acessando a plataforma.
Não que o Facebook não esteja sentindo o baque. O bolso é a parte mais sensível de qualquer companhia. Como explica Fernando Kanarski, esse tipo de pressão pode realmente fazer “empresas como Google ou Facebook tomarem decisões mais rapidamente frente ao boicote de seus maiores anunciantes”.
Mas, enquanto tiver o controle da situação, o Facebook só vai ceder até certo ponto, talvez como contenção de estragos. Podemos esperar, sim, que as redes sociais da empresa sejam mais rigorosas com relação ao discurso de ódio, às fake news e outros conteúdos nocivos, mas acreditar em mudanças radicais no funcionamento desses serviços é apostar alto demais.
O sinal de alerta deve estar ligado por lá, mas, com a proximidade das eleições presidenciais dos Estados Unidos e o fato de este ser um ano complicado para praticamente todas as redes sociais, é bastante provável que o Facebook já estivesse preparado para lidar com um período de turbulência.