Apagão profissional: há vagas abertas, mas talentos estão fugindo do Brasil
Brasil forma 46 mil profissionais de TI por ano, mas com muitos indo embora, déficit no país deve chegar a 410 mil talentos em 2022
Brasil forma 46 mil profissionais de TI por ano, mas com muitos indo embora, déficit no país deve chegar a 410 mil talentos em 2022
Construir carreira tech no exterior sempre foi o objetivo dos brasileiros Felipe, Mariana e Marina. Mas eles não estão sozinhos: salário atraente, qualidade de vida, experiências culturais, entre outros fatores, levam muitos talentos de TI embora para os Estados Unidos e a Europa, sobretudo Holanda, Portugal e Alemanha. Essa fuga, porém, impacta diretamente as empresas nacionais e há um risco iminente de o Brasil passar por uma escassez de profissionais na área.
Segundo a Softex, uma organização social que atua para fomentar a transformação digital brasileira, o país pode registrar um déficit de quase 410 mil talentos já em 2022. Isso representa uma perda de R$ 167 bilhões para o setor. O Tecnoblog ouviu brasileiros que decidiram arriscar uma oportunidade em empresas no exterior. A reportagem também consultou especialistas para entender o porquê desse movimento e como as companhias nacionais podem reverter esse cenário de exportação em alta.
Com passagens por empresas de tecnologia da Espanha, Suécia e dos Estados Unidos, Felipe Ribeiro Barbosa, 36, é um engenheiro de software que deixou o Brasil em 2010. Assim como muitos colegas de profissão, Ribeiro sempre quis se mudar para o exterior — ele só não imaginava que o sonhado “sim” viria tão rápido.
Formado em ciência da computação pela Universidade Federal de Campina Grande (Paraíba), o profissional relatou ao Tecnoblog que a busca por oportunidades lá fora começou ainda na vida acadêmica e os projetos paralelos de tecnologia desenvolvidos na época, junto à faculdade, também contribuíram para o processo seletivo.
Ele começou trabalhando em Madrid, na Tuenti, uma rede social espanhola que, felizmente, não é controlada por Mark Zuckerberg. Depois, ele passou sete anos no Spotify e atualmente é funcionário da Netflix, na Califórnia (EUA), onde vive com a mulher e os filhos.
“Enquanto estava na universidade, eu participava muito de eventos de software livre, de palestras, contribuições e também trabalhava como freelancer. Mas nunca trabalhei como CLT no Brasil, não como programador. E, na área da tecnologia, nunca fui empregado no Brasil. Eu era estudante de ciência da computação e tinha esse movimento de projetos paralelos à minha educação e isso foi encontrado por recrutadores da Tuenti, que estavam procurando profissionais de vários lugares, inclusive do Brasil. Na época, era a maior startup espanhola, estavam indo muito bem; assim como no Brasil muita gente usava o Orkut, a Tuenti era a rede popular na Espanha, antes do Facebook dominar o mundo”.
Felipe Ribeiro Barbosa, 36, engenheiro de software
A analista de produto sênior, Mariana Fomin, 36, sempre se dedicou aos estudos e se orgulha do investimento feito ao longo dos anos; fez graduação, cursos e MBA. No Brasil, ela já prestava serviço para uma empresa canadense, ganhando em dólar, porém sentiu a necessidade de deixar o país; um objetivo que já vinha cogitando com o marido. Em janeiro de 2020, ela se mudou para a Holanda e hoje trabalha na Just Eat Takeaway, com sede em Amsterdã, um dos destinos favoritos para muitos profissionais da tecnologia.
A vida agitada em São Paulo foi um dos motivos que fez Fomin procurar uma oportunidade fora. Além disso, a impossibilidade de algumas companhias aqui no Brasil em não pagar um salário similar ao da empresa canadense também contribuiu para a tomada de decisão. A valorização dos holandeses é marcante: hoje, a analista de produto ganha 10 vezes mais que no Brasil, a qualidade de vida mudou, bem como a liberdade.
“Eu fiz várias coisas para deixar o meu currículo bom, mas parecia que não era suficiente. Na Holanda, por outro lado, como eu sou expatriada, existe todo um incentivo do governo para que as empresas locais tragam pessoas de fora, porque está faltando profissionais de tecnologia aqui. Então, eu tenho um salário-base maior do que o dos holandeses; faço parte de um programa ‘30% Ruling’, que significa que eu só pago imposto de renda sobre 70% do meu salário e isso é vigente por 5 anos. Os próprios holandeses não têm essas vantagens que os expatriados têm”.
Mariana Fomin, 36, Analista de produto sênior
Já na Alemanha, nós conhecemos a história da ex-Nubank Marina Limeira, 24. Ela é engenheira de software e reside no país europeu desde 2019, onde vive com o marido, que também trabalha com TI, e o filho pequeno que nasceu lá.
Mesmo morando na Europa, Limeira trabalha (remotamente) para uma empresa de tecnologia baseada no Arizona, Estados Unidos. Ela ainda é caloura e conta que está em um processo de adaptação em Berlim.
A profissional passou a infância no interior de Alagoas e sempre teve curiosidade em conhecer cidades grandes. Com isso também veio a vontade de deixar o Brasil para se aventurar por outras culturas ao redor do mundo. Hoje, é fluente em inglês, mas faz curso de alemão para conseguir ter uma “vida normal” em Berlim.
Ela é sincera ao dizer que passou e ainda passa por alguns perrengues na terra de Angela Merkel, até porque, diferentemente dos brasileiros, os europeus são mais frios. E isso fica ainda mais evidente no ambiente de trabalho. Assim como alertaram alguns especialistas ouvidos pelo Tecnoblog, Marina lembra que esse e outros percalços num país de cultura diferente fazem com que muitos talentos retornem ao Brasil.
“Primeiro surgiu essa curiosidade ‘como é viver fora da minha cidade?’, então cheguei a morar em São Paulo. Em segundo lugar, eu queria ver outra cultura, saber como é viver fora do Brasil. Aí eu me mudei para a Alemanha em 2019. A gente acha que lá fora é tudo melhor e maravilhoso. Não é verdade, até porque não sou daqui. Nós não sabemos a língua nem como as coisas funcionam. Você chega aqui e o mercado de tecnologia não necessariamente é melhor. Em Berlim tem muitas startups, mas se você comparar o nível técnico das pessoas em São Paulo e aqui, eu diria que em São Paulo é melhor, elas são bem mais esforçadas”.
Marina Limeira, 24, Engenheira de software
De acordo com a Brasscom (Associação Brasileira das Empresas de Tecnologia da Informação e Comunicação), o Brasil injeta no mercado 46 mil profissionais de tecnologia por ano. Mas tudo isso não é suficiente. Eles acreditam que entre o período de 2018 a 2024, a demanda por talentos na área será de 420 mil pessoas. “Esses números despertam para a necessidade de formação de mão de obra qualificada no curto prazo”, alerta a Brasscom.
Muito se fala no apagão profissional na área de TI. Sarah Hirota, líder de pessoas e cultura da startup Fhinck, tem outra visão e acredita que o Brasil não deve sofrer uma grave escassez nos próximos anos como aponta a pesquisa da Brasscom. Contudo, ela admite que as empresas de tecnologia precisam sair da zona de conforto e se mexer, senão a procura por talentos será ainda mais difícil.
“Eu acho que um apagão não. Se as empresas realmente acordarem, acredito que a própria solução para a escassez está aqui. É na formação, no investimento nos profissionais de entrada no mercado, é quebrar alguns paradigmas que nós temos. Então, a gente tem uma série de movimentações dessa questão da diversidade, de trazer mulheres para o mercado de tecnologia, precisamos investir em ações de formação de pessoas. Temos pessoas interessadas. Vai ter um apagão? Vai ter um apagão se a gente não der oportunidade para essas pessoas, e são pessoas que querem, tem vontade. Existem cursos e várias formas de desenvolver esses talentos. O apagão está na estratégia ‘só quero trazer profissionais seniores'”.
Sarah Hirota, Líder de pessoas e cultura da startup Fhinck
Um levantamento feito pelo Tecnoblog, com base nas informações extraídas com especialistas e talentos que vivem em outro país, mostra que os motivos que fazem esses profissionais de TI deixarem o Brasil são: a instabilidade política atrelada à situação socioeconômica, a necessidade em conhecer novas culturas, a qualidade de vida, sobretudo a segurança, e o salário mais vantajoso, dado que o real vem se desvalorizando.
Quem acompanha esse movimento de perto é o português Diogo Oliveira, CEO da Landing.jobs, um marketplace de talentos que conecta desenvolvedores de vários lugares do mundo a empresas tech na Europa.
Em conversa com a nossa reportagem, ele conta que a crise na busca por pessoas em TI não só está acontecendo no Brasil, como bem alertou a Mariana Fomin. Oliveira ainda ressalta que temos bons profissionais e o Brasil, no geral, tem um histórico muito ligado à programação.
Ao Tecnoblog, a Landing.jobs revelou que a plataforma conta com 25 mil brasileiros ativos que estão à procura de trabalho fora. Até agora, eles já garantiram emprego para cerca de 400 pessoas do Brasil.
Diogo Oliveira salienta que Portugal é o mercado mais ativo dentro da Landing, em seguida vem o nosso país. No entanto, ele acredita que em apenas um ano o Brasil vai passar Portugal. As expectativas são altas.
“Um número muito interessante de compartilhar é que até a data de hoje nós já realocamos mais de 400 brasileiros para vários lugares. Os destinos mais procurados são, sem dúvida, Alemanha e Holanda. Sem dúvida. Também um pouquinho ali nos países nórdicos, mas muito, muito mais, a Holanda e a Alemanha – para além de Portugal, é claro”.
Diogo Oliveira, CEO da Landing.jobs
O relatório Decodificando talentos digitais, produzido pela Boston Consulting Group (BCG) em 2019, mostra que 75% dos especialistas em tecnologia brasileiros e indianos estão abertos a oportunidades em outros países. Após ouvir 26.806 pessoas da área em mais de 180 países, a BCG concluiu que, respectivamente, Londres, Nova York, Berlim, Amsterdã, Barcelona e Dubai são as cidades mais procuradas por esses especialistas.
“Há muita qualidade no Brasil, reconhecida internacionalmente. E principalmente com estes novos fluxos de trabalho, remoto, mas também com esta vontade, este desejo — que eu sei que não é ótimo de ouvir para um brasileiro, mas —, é comum saber que há alguma instabilidade política, econômica, social, de saúde também. Então muita gente está à procura de soluções fora do Brasil. Então para nós é óbvio que vai haver uma explosão maior deste tipo de contratações e talentos na nossa comunidade”.
Diogo Oliveira, CEO da Landing.jobs
Agora precisamos falar da Holanda. Por que Amsterdã tem atraído tantos talentos brasileiros? A reportagem procurou a Embaixada do Reino dos Países Baixos em Brasília para obter mais informações e detalhes sobre a concessão de vistos para profissionais brasileiros em Amsterdã, mas fomos informados pela assessoria de imprensa que “infelizmente não há informações para disponibilizar”. Então recorremos aos especialistas.
Oliveira lembra que a Holanda é um dos países mais abertos para estrangeiros que lá querem trabalhar. Além disso, há muitos incentivos tanto das empresas quanto do governo, como bem contou a brasileira Mariana Fomin no início desta matéria. O custo de vida na Holanda também é mais alto, porém o salário que eles pagam tende a ser mais vantajoso em relação à Alemanha, por exemplo.
Acho que posso dizer que, para mim, é relativamente óbvio, há várias coisas, na verdade. O primeiro, é importante saber que a Holanda não é muito grande e Amsterdã não é um polo gigante. O interessante aqui é: a Holanda, desde cedo, foi um país mais aberto para atrair o talento internacional, sempre. Então foi, de longe, o primeiro país na Europa — mesmo antes do Reino Unido — a compreender que com o talento que tem domesticamente, não chega, tem que se abrir. E os esforços não foram só proativos no Brasil, o esforço foi “eu estou aberto a talento global”.
Diogo Oliveira, CEO da Landing.jobs
Atualizado em 27 de setembro de 2021, às 18h53