Você está curtindo aquela soneca pós-almoço de domingo quando toca o telefone. Ainda que meio tonto, dá para reconhecer a voz zangada da tia Gumercinda:

— Seu moleque remelento! O que foi que você fez no meu computador?

O computador da tia estava cheio de vírus e spywares, mas você, generosamente, foi até a casa dela dia desses e fez uma manutenção básica.

— Corre para cá agora e dá um jeito nisso aqui! — E desliga na sua cara.

Nem tem como argumentar. A tia Gumercinda está entrando na menopausa, tem crises de enxaqueca, sabe como é… Quando algo sai dos eixos, baixa o Saraiva nela.

E lá vai você, lamentando que sua tarde de domingo foi para o saco. Chega lá e encontra a tia espumando:

— O que foi que você fez no meu computador? Disse que ia tirar os vírus, mas agora está falando que está desprotegido, vai entrar algum ladrão no meu computador e roubar dinheiro do meu banco… (e blablabla…)

E agora quem tem uma crise de Saraiva é você, que amaldiçoa até a 5ª geração do criador daquele antivírus. Se é só um aviso para atualizar, precisa pipocar janelas vermelhas com pontos de exclamação o tempo todo? De fato, um leigo que vê aquilo acha que é um alerta de tsunami…

* * *

Já falamos aqui no Tecnoblog sobre as “crises de Saraiva” que os profissionais de TI costumam ter diante da ignorância digital dos leigos. Mas e quando o Saraiva está do outro lado?

O Saraiva corporativo

Existe um tipo de Saraiva bem perigoso porque parece, à primeira vista, inofensivo. É o cidadão que acha que você está com alguma má vontade com ele, mas não diz nada. Ele trata de destilar o veneno mais tarde, pelas suas costas.

Certamente muitos de vocês se enquadram no perfil de vítimas desse tipo de Saraiva. Você trabalha numa empresa dentro de uma função que não é a de helpdesk, mas é chamado o tempo todo para socorrer os colegas porque é “aquele cara que entende de computador”. Muitas vezes, você nem é da área de TI, mas demonstra maior desenvoltura com produtos hi-tech e acaba se transformando informalmente em suporte. Se você tem um blog, por mais humilde que seja, é ainda pior: as pessoas passam a achar que você tem a obrigação de resolver problemas alheios à sua função.

Uma pessoa, cujo nome eu obviamente manterei em sigilo, passou por uma situação constrangedora recentemente. Como ele está a cada dia com um celular diferente, pois costuma testá-los para blogar a respeito, teve gente na empresa — que não tem nada a ver com tecnologia — achando que ele ganha todos aqueles celulares. Um deles é justamente o mais Saraiva, bronco e intolerante: o chefe. Que o intimou a “arrumar um smartphone para ele”.

Não adiantou explicar que aqueles aparelhos eram devolvidos depois dos testes. Os colegas, invejosos da eficiência do colega tecnológico, botaram pilha. O assédio moral foi tamanho que ele se viu obrigado a comprar um aparelho e dar para o chefe. Só para dar fim naquele burburinho.

Talvez vocês não tenham passado por esse extremo. Mas algum colega folgado certamente já interrompeu o seu trabalho com um celular na mão pedindo ajuda para configurar alguma coisa. É complicado, porque se você ajudar uma pessoa, outras se sentirão à vontade para fazer o mesmo. Fatalmente a produtividade cai e sua imagem ficará comprometida.

O ideal é, desde o início, não ostentar gadgets, nem blogar e tuitar no horário de trabalho à vista de todos. Ainda que você escreva algo para postar, agende para publicá-lo num horário após o expediente. Sim, sempre tem um colega pescoção esperando algum deslize seu: “fulano fica postando no bloguinho dele no horário de trabalho!”

Mas e quando o estrago já está feito, o que fazer? Seguem algumas dicas:

  1. Caso você tenha uma sala com porta, mantenha fechada.
  2. Se você trabalha em baia, ou numa sala comum, tire cadeiras extras de perto de você. Ou encha-a de pastas, mochilas e casacos. Quando há uma cadeira vazia ao seu lado, um folgado certamente já chegará sentando com algum aparelho em mãos pedindo ajuda.
  3. Quando estiver compenetrado em alguma tarefa, por exemplo, lendo ou escrevendo, coloque fones de ouvido. Mesmo sem tocar música alguma. O mesmo vale se você almoça sozinho ou faz intervalos (curtos) para um café. Os fones intimidam os malas. Experiência própria!
  4. Use um aplicativo no seu smartphone que simula que você está recebendo uma ligação. São excelentes dispensa-chatos.

Nas situações mais radicais, você pode usar o seu Saraiva interior e tirar proveito da situação. Se você não tiver um blog, monte um, e coloque lá que nas horas vagas você dá assistência em informática. Faça um cartão de visitas com um telefone que não é do trabalho. Para cada cidadão que o procurar pedindo ajuda, entregue-o, explicando que você está “formalizando” seu trabalho para não interferir com o expediente da empresa. E diga o preço.

Não faz mal que você nunca venha a ser solicitado. O objetivo aqui é ter paz na empresa. Eventualmente, pode até ser que você consiga um troco extra para a balada de sábado… Mas não fuja do mantra: colega folgado, tolerância zero.

O Saraiva familiar

Nos últimos dias, passei por uma experiência enlouquecedora com minha mãe fazendo imposto de renda. O problema não é com a declaração em si — isso foi o trabalho dela antes de se aposentar —, mas com as entranhas digitais da confecção. Ela ainda não se adaptou bem ao Mac OS e, embora esteja com ele há um tempinho, seu raciocínio é a la Windows. Até eu me embananei, pois, para piorar, o software da Receita também é feito no espírito Windows. O software da Receita não se instala dentro dos Aplicativos, como deveria ser. Ele bota uma pasta a esmo lá no diretório raiz. As declarações também não ficam onde deveriam, nos “Documentos”. Como explicar para ela que o software faz tudo diferente daquilo que eu havia ensinado?

Mas eu sou um poço de paciência. Não trabalharia com idosos e portadores de deficiências se assim não fosse. Minha mãe tem ataques de Saraiva todo santo dia, desde que me entendo por gente. Se eu perder a paciência com ela, é pior. Além disso, quero que ela se entrose com a tecnologia. Portanto, nada de entregar o peixe. Eu explico e ela faz. (Sou masoquista?)

Só que ela é teimosa como uma porta. Eu mostro o caminho das coisas, mas ela retruca que tem certeza que não está lá. Apesar de saber que hoje trabalho com tecnologia, ela sempre acha que sabe mais. Coisa de mãe mesmo. Em certos momentos, a coisa fica mais feia ainda e eu preciso assumir a direção do laptop. Ela se apavora:

— Cuidado! Não vai apagar todas as coisas do meu computador!

Costumo ficar quieta quando ela fala um absurdo desses… Mas dessa vez, minha paciência estava acabando. Dou um suspiro profundo, paro o que estou estou fazendo e viro para ela, com a voz mais calma possível:

— Mãe, eu sou especialista nisso, esqueceu? Pára de falar essas coisas! Acabei de ganhar o Troféu Mulher Imprensa. Você acha que eles iam premiar uma lesada que apaga as coisas do computador de bobeira?

Ela fica em silêncio. Quando acho que venci a batalha, ela me olha com o canto do olho e franze uma das sobrancelhas:

— Sei não…

Mãe é mãe. Não adianta.

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Escrito por

Bia Kunze

Bia Kunze

Ex-colunista

Bia Kunze é consultora e palestrante em tecnologia móvel e novas mídias. Foi colunista no Tecnoblog entre 2009 e 2013, escrevendo sobre temas relacionados a sua área de conhecimento como smartphones e internet. Ela também criou o blog Garota Sem Fio e o podcast PodSemFio. O programa foi um dos vencedores do concurso The Best Of The Blogs, da empresa alemã Deutsche Welle, em 2006.