Por que o uso de reconhecimento facial na segurança é controverso?
Enquanto avança no Brasil, reconhecimento facial para segurança pública é questionado por riscos sobre privacidade
Enquanto avança no Brasil, reconhecimento facial para segurança pública é questionado por riscos sobre privacidade
O uso do reconhecimento facial para identificar suspeitos por crimes é alvo de debates em vários países há algum tempo. A discussão se concentra na linha tênue entre os avanços na segurança pública e a restrição da liberdade e da privacidade dos cidadãos. Em meio a isso, sobram dúvidas sobre como os dados são armazenados e qual a eficiência dos sistemas adotados por autoridades.
No Brasil, o assunto tem ganhado força à medida em que mais cidades e estados adotam a tecnologia. Mesmo sem uma regulação específica para o uso do reconhecimento facial na segurança pública, é possível encontrar várias casos de órgãos de segurança que implementam sistemas para comparar fotos de suspeitos com registros de bancos de dados.
Os casos vão do Rio de Janeiro, que começou a testar um sistema de reconhecimento instantâneo em 2018, até o Ceará, onde policiais contam com aplicativos que realizam o reconhecimento de suspeitos sem identificação. Apesar dos avanços das ferramentas, especialistas em direito digital alertam para os riscos que elas podem trazer à população.
Um deles envolve o tratamento de dados dos cidadãos. De modo geral, os órgãos de segurança oferecem poucos detalhes sobre como as informações são armazenadas e gerenciadas. Há, ainda, a preocupação com a precisão dos sistemas, que, em outros países, mostraram que os erros não são tão raros. Para entender como a tecnologia avança no Brasil, podemos começar com o estado mais populoso do país.
Um dos principais sistemas de reconhecimento facial para segurança pública no Brasil é o de São Paulo. Adotado pela Polícia Civil, ele compara imagens de câmeras com uma base de dados com mais de 30 milhões de RGs emitidos no estado. A solução foi desenvolvida pela Thales Gemalto, que já oferecia há alguns anos uma ferramenta para comparar impressões digitais.
O Tecnoblog conversou sobre o sistema com Ricardo Abboud, gerente de vendas para soluções de identidade e biometria da Thales Gemalto. Segundo ele, a ferramenta de São Paulo crescerá com a emissão de novos RGs e está preparada para receber até 90 milhões de registros. Ele também explicou que a comparação entre as imagens das câmeras e dos documentos não acontece automaticamente.
Em vez disso, agentes da Polícia Civil precisam ter acesso às imagens capturadas por dispositivos em vias públicas ou até mesmo em celulares de testemunhas e compará-las com a base de dados de RGs, conhecida como Sistema Automatizado de Identificação Biométrica (ABIS, na sigla em inglês). A empresa informa que possui certificações que garantem um alto grau de eficiência.
“Todo e qualquer sistema de comparação, seja ele de biometria facial, ou de impressão digital, tem dois pontos importantes: um é a qualidade do banco de dados, onde a busca será feita. Esse banco de dados precisa ter uma qualidade das fotos e das impressões digitais adequada”, explica Abboud.
“O segundo ponto importante é a imagem que você vai buscar nesse banco de dados. Quanto melhor for essa foto, quanto melhor for a condição de luminosidade, de quantidade de pixels entre os olhos e tudo mais, melhor será a assertividade do reconhecimento facial e da impressão digital”.
A Thales Gemalto afirma que seus sistemas usam fotos que seguem os padrões da Organização da Aviação Civil Internacional (ICAO), que determina regras para as fotografias em documentos como passaportes. Ele prevê que a imagem deve ter um posicionamento adequado, fundo branco e uma quantidade de pixels entre os olhos, o que ajuda ferramentas de reconhecimento facial a serem mais precisas.
Ainda de acordo com Abboud, o sistema da empresa utiliza aprendizado de máquina e consegue melhorar a identificação de faces à medida em que é mais exposto a elas. O executivo afirma que, ao contrário de ferramentas que se mostram mais imprecisos na identificação de pessoas negras, a solução da Thales Gemalto não possui diferença entre grupos étnicos porque já foi testada de maneira global.
“O sistema não reconhece cor, não reconhece cabelo, não reconhece nada disso. Se você submeter a ele uma foto em preto e branco ou até mesmo em infravermelho, é até melhor porque não é baseado nesse tipo de coisa que ele vai aprender”, explica.
Além do estado de São Paulo, a companhia oferece serviços para países como França, Alemanha, Espanha, China, Índia, Árabia Saudita, Argentina, Peru, México, Marrocos e Costa do Marfim. No entanto, são os Estados Unidos que mais chamam a atenção. Por lá, o Departamento de Segurança Interna utiliza um sistema de biometria com mais de 700 milhões de pessoas cadastradas em portos, aeroportos e embaixadas.
A Polícia Civil de São Paulo realiza a identificação de suspeitos por meio do Laboratório de Identificação Biométrica, presente no Instituto de Identificação Ricardo Gumbleton Daunt (IIRGD). O espaço foi inaugurado no início de 2020 com 102 estações para pesquisa e pode se comunicar com equivalentes de outros locais do país.
No Brasil, o estado da Bahia adotou o reconhecimento facial para fins de segurança pública em dezembro de 2018. Em setembro de 2020, o governo baiano informou que a ferramenta já havia auxiliado na prisão de 194 procurados. O sistema, porém, já registrou casos de falsos positivos. Há pouco mais de um ano, um jovem teve uma arma apontada contra sua cabeça após ser confundido com um procurado por assalto.
Os erros também aconteceram no Rio de Janeiro, que começou a testar em 2018 uma tecnologia de reconhecimento em tempo real. Um desses casos aconteceu em Copacabana, onde uma mulher foi levada à delegacia após ser identificada incorretamente como uma condenada por homicídio. A mulher que cometeu o crime estava na lista de procurados, mas, na verdade, já estava presa.
No Ceará, policiais contam desde 2019 com um aplicativo que permite fazer a busca pela face de indivíduos que estão sem identificação durante abordagens. Os sistemas de reconhecimento facial também foram adotados por alguns governos municipais, como os de Vitória, João Pessoa, São José dos Campos (SP), Guarujá (SP), Mesquita (RJ), Blumenau (SC) e Pilar (AL).
Os especialistas apontam que, além da falta de informações sobre como os dados são gerenciados, os órgãos de segurança brasileiros não oferecem informações sobre a eficiência desses sistemas. Na Inglaterra, por exemplo, um levantamento encomendado pela polícia de Londres e realizado por pesquisadores da Universidade de Essex apontou que 81% dos alertas feitos pela ferramenta local estavam incorretos.
O cientista político e membro do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), Pablo Nunes, considera que o mais importante é entender como as polícias brasileiras estão avaliando os sistemas de reconhecimento facial. “No caso do Rio de Janeiro, a gente pediu acesso a dados sobre número de prisões, de abordagens e de falsos positivos para gente fazer uma avaliação da eficiência do sistema. E eles disseram que não produzem esses dados”, afirmou, em entrevista ao Tecnoblog.
Para ele, a ausência dessas informações impede análises mais detalhadas sobre as ferramentas de diferentes governos. “A gente não tem como fazer uma avaliação de qual é a melhor forma ou qual produz mais danos para a sociedade porque realmente eles não produzem [os dados]. A segurança pública no Brasil é conhecida pela sua falta de dados e pela pouca importância que dá à questão de dados qualificados”.
Pablo afirma ainda que a questão sobre a eficiência das ferramentas não está sendo acompanhada com a devida importância. “Esses erros que já aconteceram estão sendo tratados como efeitos colaterais ou como algo menor, o que já revela muitas questões, principalmente quando a gente olha quem são as pessoas que estão sofrendo com esses erros, pessoas negras, jovens, que já são os alvos principais da política pública de segurança e da violência policial”.
A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que define regras para o tratamento de dados pessoais por órgãos públicos e empresas entrou em vigor em setembro de 2020, mas não vai afetar o funcionamento desses sistemas de reconhecimento facial. Isso porque seu texto conta com uma exceção caso o tratamento aconteça exclusivamente para fins de segurança pública.
“A LGPD deixa claro no artigo 4º que suas regulamentações e seus parâmetros não serão colocados em relação à segurança pública, então deixou um vácuo ali. É óbvio que a gente tem outras garantias constitucionais, mas acredito que foi um erro não se produzir uma regulação muito clara sobre o uso desses dados para segurança pública”, analisa Pablo.
No mesmo trecho, a lei determina que o tratamento de dados para a segurança pública e outras finalidades incluídas na exceção “será regido por legislação específica, que deverá prever medidas proporcionais e estritamente necessárias ao atendimento do interesse público”.
O coordenador de políticas e pesquisador do Instituto de Referência em Internet e Sociedade (IRIS-BH), Gustavo Rodrigues, explicou que a nova norma precisará ser alinhada conceitualmente com a LGPD e seus princípios gerais.
“No caso brasileiro, há uma peculiaridade porque o desenho da nossa Lei Geral de Proteção de Dados é muito inspirado no desenho da lei Europeia, a GDPR. Só que na Europa, eles promulgaram a GDPR e logo já promulgaram uma lei sobre o tratamento de dados para os fins dessas exceções, de segurança pública, etc. Aqui no Brasil, não. Nós passamos a LGPD, mas essa outra lei ficou para depois”, explica Gustavo.
A regulação brasileira sobre reconhecimento facial na segurança poderá se inspirar em uma proposta da Câmara Legislativa do Distrito Federal. Aprovada em outubro de 2020 e aguardando sanção do governador do DF, a matéria estabelece, entre outros pontos, uma proibição para a vigilância contínua de cidadãos e uma restrição ao uso de reconhecimento facial para equipamentos em espaços públicos.
Ainda de acordo com Gustavo, a adoção do reconhecimento facial tem sido vista com preocupação por conta dos riscos que a tecnologia pode trazer. “Ela pode ferir a presunção de inocência se é utilizada para vigiar quem frequenta certos espaços públicos com a premissa de que todo mundo ali é suspeito ao invés de presumir que todos são inocentes”, explica.
“Existe um risco de discriminação que é imenso porque há estudos atuais que indicam que sistemas deste tipo são mais propensos a falsos positivos quando analisam pessoas negras em relação a pessoas brancas”, continua. “Existe um risco para liberdade de expressão e para as liberdades de associação e reunião que são também afirmadas na Constituição. Porque uma pessoa que sabe está sendo vigiada muda o seu comportamento de maneira a não se expressar plenamente”.
Ele explica que isso pode fazer, por exemplo, com que pessoas decidam não participar de manifestações políticas por receio de uma eventual perseguição depois da coleta de dados. Esse risco é o principal questionamento de ações que pedem a proibição do reconhecimento facial para segurança em países como Estados Unidos e Argentina. Em locais como São Francisco e Sommerville, nos EUA, o uso da tecnologia para essa finalidade já foi banido.
“É interessante esse movimento porque ele mostra que está acontecendo um debate, ou seja, que a sociedade não tomou que a implementação dessa tecnologia é algo inevitável e que nós temos que aceitar”, afirma Gustavo. “A sociedade está tratando isso como algo que tem profundas repercussões sobre os direitos das pessoas e sobre a própria democracia, ou seja, algo que demanda debate”.
No Brasil, a Câmara dos Deputados conta com uma comissão de juristas com a tarefa de elaborar um anteprojeto de lei sobre tratamento de dados pessoais em casos não previstos na LGPD, como segurança pública, defesa nacional e atividades de investigação de infrações penais. O resultado do trabalho do grupo deverá orientar as discussões dos parlamentares sobre uma futura regulamentação.
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