A Justiça não consegue dar conta de tanto discurso criminoso na internet
As leis brasileiras se aplicam ao que é dito na internet, mas o cotidiano do Judiciário não ajuda
As leis brasileiras se aplicam ao que é dito na internet, mas o cotidiano do Judiciário não ajuda
Comportamentos tóxicos são comuns nos mais diversos ambientes virtuais. Das redes sociais aos chats de jogos online, uma enxurrada de falas de mau gosto que flui sem interrupção. Falta de educação, grosseria, insultos; tudo nos mesmos lugares onde, em tese, passamos o tempo para distrair a mente dos problemas do dia a dia.
Mas, por vezes, nos vemos diante de discursos que ultrapassam qualquer limite. Palavras que não podem ser descritas apenas como desagradáveis ou incômodas, mas sim criminosas. Afinal, ninguém pode falar o que quiser. No mundo real há regras, e, por mais que muita gente na internet não goste disso, elas também se aplicam ao que acontece apenas na tela de um computador ou celular.
Quando alguém faz uma ofensa criminosa a outra pessoa na internet, a parte ofendida pode denunciar. E os meios para isso são relativamente fáceis de acessar. O problema é que há todo um caminho posterior à denúncia que, na prática, pode ser um tanto desanimador.
Digamos que você sofreu algum tipo de injúria na internet. O crime pode e deve ser denunciado; é possível fazer a denúncia numa delegacia, ou mesmo um boletim de ocorrência online. A expectativa, após isso, é que uma investigação tenha início. Mas, na realidade concreta da Justiça brasileira, esse processo tende a ser um teste de paciência para o denunciante.
Em conversa com o Tecnoblog, o advogado criminalista João Raposo afirma que o cotidiano das delegacias é marcado por um número enorme de casos. O pessoal disponível não consegue lidar devidamente com todas as denúncias que chegam. Não se trata de uma questão de competência; por melhores que sejam os profissionais, há um limite para o que esse efetivo consegue fazer.
Eu costumo fazer uma analogia com um pronto-socorro superlotado. Você pode colocar o melhor médico do mundo ali. Se você tem cinquenta vagas, e quatrocentas, quinhentas pessoas precisam ser atendidas, vai morrer gente. Independente da qualidade técnica do profissional.
João Raposo
Essa sobrecarga resulta numa demora para que as denúncias se materializem em processos, e, posteriormente — se tudo der certo —, em condenações. Em meio a casos graves e violentos, como homicídios e sequestros, os discursos criminosos na internet podem acabar soterrados.
Ao denunciar, portanto, é importante manter essa realidade em vista. Não será surpreendente caso o processo demore alguns anos para ser concluído.
Também é importante controlar a expectativa em relação às penas. Segundo Raposo, a legislação é um tanto branda quando se trata dos “crimes da palavra” (injúrias e difamações, por exemplo) na internet. Por serem crimes que não envolvem violência física ou grave ameaça, dificilmente alguém irá para a cadeia por tê-los praticado num contexto online. A probabilidade de prisão diminui ainda mais se o réu for primário.
Ainda assim, o advogado defende que as penas aplicadas podem ser eficazes à sua maneira.
Vale a pena (denunciar) num sentido de você buscar uma efetiva condenação criminal em que a pessoa vai refletir, vai aprender sobre o que fez. E pode até mesmo perder a primariedade.
Em resumo, existem ferramentas acessíveis para iniciar uma denúncia, mas o processo é longo e possivelmente cansativo. Na opinião de Raposo, as leis existentes no momento se aplicam perfeitamente aos discursos criminosos existentes na internet, mas aperfeiçoamentos são sempre bem-vindos.
Igualmente importante, no entanto, é facilitar o acesso à Justiça para as pessoas que são ofendidas na internet. Isso passa por maior capacitação dos profissionais para lidar com esses crimes, além de uma melhora sistêmica na estrutura do Judiciário. Se isso não acontecer, é difícil imaginar um mundo em que falas homofóbicas, injúrias raciais, discursos capacitistas — entre tantos outros crimes da palavra — sejam de fato coibidas.