Franquia na banda larga fixa: o que a lei diz?

“As operadoras têm uma base frágil para se apoiar”, diz advogado sobre o limite de consumo

Jean Prado
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• Atualizado há 1 ano e 5 meses
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Com toda a euforia sobre os limites de consumo adotados pelas empresas de banda larga fixa, resolvemos esclarecer algumas questões legais sobre o assunto. Afinal, como chegamos até aqui? Como podemos recorrer? As operadoras têm base legal para aplicar as franquias? Existe como reverter a medida?

Para tirar as dúvidas sobre o assunto, entrevistamos Raphael Rios Chaia, advogado especialista em direito eletrônico e professor da Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), do Campo Grande (MS).

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TL;DR

Esta entrevista revela, entre outros detalhes importantes, que:

  • A neutralidade da rede imposta pelo Marco Civil dá a liberdade para o consumidor usar a internet para o que quiser. A franquia limitada tira essa liberdade. Ele também diz que a internet só pode ser cortada em caso de não pagamento da conta.
  • No entanto, Raphael diz que esse argumento é discutível porque a operadora pode argumentar que a conexão do usuário não foi interrompida enquanto ele estava consumindo a franquia. O Marco Civil não fala nada sobre franquias, por isso a situação fica aberta a interpretações.
  • A investigação do Ministério Público pode barrar a medida sob o argumento de formação de cartel ou com respaldo do Código de Defesa do Consumidor (CDC).
  • A audiência pública do Senado pode criar um projeto de lei para proibir o limite.
  • Petição do Avaaz não tem validade jurídica. No entanto, você pode assinar esta ideia legislativa no site do Senado para promover um projeto de lei.
  • Consumidores que se sentirem injustiçados podem acionar o Procon ou abrir uma ação no juizado de pequenas causas. “Reclamar na Anatel não adianta porque ela apoia a medida”, diz ele.
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Tecnoblog – Considerando o consumo voraz que nós fazemos da banda larga, quão prejudicial esse limite é para os consumidores?

Raphael Chaia – Para o consumidor é péssimo porque ele já não vai poder usar a internet da forma como ele gostaria. O Marco Civil da Internet determina que tenhamos a chamada neutralidade de rede, que diz respeito ao consumidor ter a liberdade de usar a internet para o que quiser.

Se você passa a me dizer que eu tenho uma franquia limitada, eu não vou poder usar para o que quiser. Porque, se eu, por exemplo, gosto de usar para Netflix, eu já não vou poder usar mais, porque quatro episódios de uma série já vão me consumir 50 GB. Se eu quiser, por exemplo, usar um disco virtual para envio e recebimento de arquivos, eu já não vou poder usar tanto, porque eu sei que vai acabar consumindo a minha franquia.

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Existe essa tese de que viola a neutralidade de rede, de fato, porque a neutralidade de rede já elevou a conexão de internet ao status de serviço essencial. Ela só pode ser cortada por falta de pagamento. Mas esse é um ponto que ainda pode ser muito discutido, porque ainda não foi regulamentado no Marco Civil.

“O retrocesso também vai ser para o consumidor do setor terciário”.

Agora, outro ponto prejudicial que eu fico pensando: nós temos hoje muitos estabelecimentos comerciais que oferecem internet por cortesia. Um bar, um restaurante. Se eles contratam um provedor, você já não vai mais ter esse tipo de cortesia. A ausência de uma internet disponível por meio desses provedores para pequenos comércios, pequenos negócios, pequenos empresários, já vai atrapalhar também. Vai representar um retrocesso.

Pior do que a franquia de dados que eles oferecem, são as franquias complementares. O sujeito me cobrar R$ 39 por um pacote complementar de 20 GB ou 10 GB. O que você faz com 10 GB hoje? Não faz nada.

Então, assim, o retrocesso não vai ser nem para o consumidor final, vai ser também para o consumidor do setor terciário, empresários principalmente, e vai também ser para o desenvolvimento de tecnologia, que no Brasil já é bem atrasado.

Tecnoblog – Além da neutralidade de rede, o Marco Civil dispõe que a operadora só pode barrar o acesso se o cliente deixar de pagar a conta. Esse argumento é discutível, então?

Raphael – Dá para discutir. É o seguinte: por um lado, o Marco Civil elevou a conexão à internet à status de serviço essencial. Isso é reflexo porque a Organização das Nações Unidas (ONU), em 2015 se não me falha a memória, declarou que o acesso à internet é um direito humano.

Isso é importante. Porque se a gente tem a ONU dizendo que o acesso à internet hoje é um direito equiparado a um direito humano, e no Brasil a gente fala que o acesso à internet é um serviço essencial, então você não poderia limitar essa conexão de qualquer forma.

O argumento poderia ser desdobrado da seguinte forma: a operadora poderia dizer que não interrompeu a conexão do usuário, enquanto ele estava consumindo a franquia. A questão é que o Marco Civil não aborda essa ideia de franquia de dados. Esse é um ponto que demanda regulamentação. Aí entram as resoluções e portarias da Anatel, que é uma agência reguladora, órgão do governo.

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O grande problema diz respeito aos contratos antigos. Hoje as operadoras dizem que não vão mexer nos contratos antigos. Eu prefiro crer que elas realmente não vão mexer, mas não temos garantia nenhuma disso.

Por que eu digo isso? Porque nós temos a resolução 632/2014 da Anatel, que diz no Art. 52 que “as operadoras podem modificar, unilateralmente, o contrato, ou podem ainda terminar o contrato apenas com uma prévia comunicação de 30 dias ao consumidor”. Ou seja, se eu tenho um contrato antigo dizendo que minha conexão é ilimitada, e a operadora quiser chegar para mim e falar que meu contrato não vai valer mais daqui 30 dias, segundo a Anatel eles podem fazer isso.

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Só que isso viola o Código de Defesa do Consumidor (CDC), no Art. 51, que diz que “contratos de adesão não podem ser alterados unilateralmente sem um novo aceite do consumidor”. Então, pela lei, se eu tenho um contrato com a operadora, ela não pode mexer sem a minha autorização. Mas segundo a Anatel, pode.

Ainda que se use esse argumento que a Anatel apoie as operadoras e que a Anatel permite a mudança, a lei não permite. Os princípios da boa fé contratual não permitem. Dá pra questionar em juizado [de pequenas causas] e dá pra questionar na justiça. Dá pra acionar o Procon. Como o Procon do Distrito Federal está fazendo: investigando se é legal, se é válido, se é formação de cartel ou não, e por aí vai.

Tecnoblog – Esse é um ponto interessante, porque o próprio Ministério Público do DF está investigando. O promotor que está cuidando da investigação teme que o limite pode ferir o livre acesso à rede. No que pode resultar essa investigação do Ministério Público? Eles têm algum poder para barrar alguma coisa?

Raphael – Sim, eles têm poder pra barrar essa medida, com certeza. Estávamos discutindo aquelas franquias de internet, de 300 GB, 130 GB, etc. A gente precisa lembrar que essas franquias são dos pacotes mais caros. A esmagadora maioria dos usuários no Brasil usa pacotes mais baratos, de 5 Mb/s ou 2 Mb/s, por exemplo. E a franquia é de 50 GB só.

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“Você mata todo um setor educacional.”

Ou seja, para a população acaba sendo péssimo e o MP tem razão. Vamos tomar como exemplo uma casa que tenha quatro pessoas dividindo 50 GB, essa franquia vai estar cortando acesso à informação, acesso às redes sociais, acesso a cursos online. A gente vive hoje uma fase de popularização de cursos online muito grande, a educação à distância (EAD) é muito forte. As grandes universidades hoje oferecem cursos online, com vídeo, com áudio. Você mata todo um setor educacional.

O MP pode barrar, pode proibir? Pode. Sob qual argumento? O de formação de cartel. Agora, para poder declarar que há formação de um cartel, tem que ter todas as características preenchidas, verificar se todas estão seguindo uma política igual, vão cobrar valores parecidos ou proporcionais, e por aí vai. Hoje, ninguém pode afirmar que há um cartel. Tanto que o MP vai investigar para definir isso. Havendo as características de cartel bem definidas e caracterizadas, dá para o MP barrar essa medida.

Tecnoblog – Então esse argumento do livre acesso à rede com respaldo do CDC é fraco para o Ministério Público usar?

Raphael – Não, pelo contrário, é muito forte. Eles podem e devem utilizá-lo. Foi como eu falei pra você: o CDC proíbe que você mexa nos contratos, e também exige que as políticas sejam favoráveis ao consumidor. É impraticável você imaginar que a promotoria do consumidor vai aceitar uma mudança de um serviço que já vem sendo realizado há anos de uma forma, para uma que vai ser prejudicial ao consumidor sem que haja qualquer mudança dos valores cobrados.

Tecnoblog – Então caso eles não comprovem que há formação de cartel, eles podem usar esse respaldo do CDC?

Raphael – Com certeza. Podem e devem. Assim, no começo vão ser muitas reclamações individuais, mas precisamos lembrar que as ações coletivas também têm muita força.

“abaixo assinado não tem validade jurídica.”

Uma coisa que o pessoal também precisa saber: abaixo-assinado não tem validade jurídica, porque você não tem como certificar digitalmente as assinaturas. Porém existem proposituras legislativas no site do Senado, que se forem assinadas, têm validade.

Existe hoje um projeto de lei no Senado colhendo assinaturas públicas (veja aqui). Estava na casa das 5 mil da última vez que eu olhei [até o momento desta publicação são 11 mil assinaturas]. Exatamente para colocar em lei a proibição de franquear a internet fixa. Esse é um ponto que vale a pena o pessoal destacar. Todo mundo está muito preocupado em fazer aquele abaixo assinado do Avaaz, e acaba jogando informação onde não deve. Se jogasse nessa propositura legislativa do Senado, com certeza teríamos resultados bem mais rápidos.

Tecnoblog – Certo. Outra ação que está acontecendo no Senado é uma audiência pública. Na semana passada, a Comissão de Ciência e Tecnologia (CCT) do Senado convocou essa audiência pública para debater esse limite das operadoras. Qual é exatamente o trâmite dessa audiência?

Raphael – Bem, a audiência pública vai ser discutida numa comissão. A comissão vai analisar os aspectos técnicos do projeto. Passou pela comissão, aí ela vai ser votada nas casas, no caso como é um projeto de lei do Senado vai ser votado no Senado.

Senador Lasier Martins (PDT-RS), presidente da CCT que propôs a audiência pública no Senado.
Senador Lasier Martins (PDT-RS), presidente da CCT que propôs a audiência pública no Senado.

Mas é que antes de ir pra votação, essas discussões feitas em comissões são de caráter técnico. Para verificar características, conceitos da norma, etc. Todo o projeto de lei passa por uma comissão. A comissão depende do assunto da matéria. Pode ser uma Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), pode ser uma Comissão de Direitos Humanos (CDHM), pode ser uma Comissão de Ciência e Tecnologia (CCT).

Como é um projeto de lei que trata de conexão à internet, banda larga, provedores, etc, passa pela CCT. Essa comissão convida pessoas técnicas, professores, profissionais da área, convida os autores do projeto para discutir e aparar as arestas. Aparou, resolveu o anteprojeto, aí manda o anteprojeto para votação para poder virar projeto.

Tecnoblog – Vários senadores já se mostraram contrários ao limite da banda larga fixa. Há esperanças dessa audiência frear a onda das operadoras e da Anatel para estabelecer esse limite?

Raphael – Olha, considerando que algumas operadoras já estão voltando atrás e já estão desdizendo algumas coisas, dá pra ter uma boa esperança sim. É possível esperar um bom resultado. Porque as reações foram muito negativas e muito inflamadas. Muita gente se manifestou contra as operadoras, surgiram muitas operadoras menores com intenção clara de ampliar mercados por conta disso, a exemplo da Algar, que atua no DF, e em algumas cidades do interior de vários estados.

Então as operadoras viram que pegou mal. Que ficou ruim pra elas. E elas sabem que, juridicamente falando, elas têm uma base fraca para se apoiar. Elas sabem que se houver questionamentos na justiça elas podem ter que voltar atrás.

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Por exemplo, a Vivo, que dizia que ia aplicar o limite, já falou que vai aplicar, mas também vai oferecer pacotes ilimitados. A NET já falou que aplica a franquia desde 2004, mas não vai mudar nada, e sim continuar com a redução. A TIM declarou que não vai fazer redução. A Oi não se pronunciou.

Ou seja, elas já voltaram atrás naquela intenção inicial só com a pressão popular. Havendo essa pressão agora de agentes públicos, você entrar com um projeto de lei, fazer audiências públicas, ter a pressão da investigação do MP para verificar formação de cartel… Estão até desenterrando denúncias de 2013 contra a Anatel por conta desse caso.

Eu acho que toda essa pressão que está sendo feita vai ser positiva e existe sim uma chance boa de barrar essa medida.

Tecnoblog – Então, na sua opinião, é possível que esse limite não aconteça?

Raphael – É possível. Há uma chance sim, eu diria de 50%. Está bem meio a meio.

Tecnoblog – E qual a saída mais viável para que essa onda seja freada? Ou são todas essas medidas do MP, do Senado, juntas, que pressionam as operadoras?

“reclamação na anatel não adianta.”

Raphael – Olha, é bom frisar que, para o consumidor comum, reclamação na Anatel não adianta, porque a Anatel apoia a medida. Então não adianta nem perder tempo com isso. O ideal seria mesmo reclamação junto à promotoria do consumidor, o Procon, ou promover uma ação no juizado, ou em caso extremo, se houver a opção, o boicote.

Ou seja, partir para um provedor menor, local, que não adote o limite, como é o caso da Copel, no Paraná, a Algar Telecom, no DF, e por aí vai. Mas as medidas mais eficientes seriam ainda o juizado, ou o Procon. Anatel é uma carta fora do baralho.

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Beto Richa (PSDB-PR), governador do Paraná, falando sobre a Copel.

Tecnoblog – Infelizmente, em algumas regiões, o boicote não é viável porque as operadoras grandes são as únicas disponíveis.

Raphael – Exatamente, e aí entra toda aquela discussão de novo da burocracia que é imposta para a instalação de novos provedores. Aqui no Brasil, a gente trabalha com uma média de cinco a sete provedores enquanto os Estados Unidos têm uma média de 80 provedores.

Então não temos opções muitas vezes, mesmo em grandes centros, ou grandes cidades, você não tem os três atuando. Aqui em Campo Grande, que é a capital do Mato Grosso do Sul, não tem Vivo Fibra, não tem TIM Live. Só temos duas opções de internet: a GVT, que agora é Vivo, ou NET. Acabou.

Tecnoblog – Você quer destacar mais algum ponto sobre o limite de dados na banda larga fixa?

Raphael – É um retrocesso injustificável. Estamos vendo o mundo inteiro trabalhando com políticas cada vez mais de popularização da internet, o Facebook com projetos de cidades Wi-Fi, o Google popularizando a internet…

Temos conexões cada vez mais rápidas fora do Brasil e aqui uma internet que é precária, uma infraestrutura que ainda usa fio de cobre na maioria da cobertura, caríssima, a internet mais cara do mundo, e ainda para ajudar, vão limitar a franquia de dados?

“estamos caminhando na contramão das tendências mundiais.”

Estamos caminhando na contramão das tendências mundiais. Nós precisamos ter o acesso à internet não só para entretenimento, mas é uma questão de conhecimento, acesso à informação, educação. Já ficou provado que hoje as pessoas estão navegando na internet para ver notícia mais do que assistindo televisão. A internet já se tornou hoje o principal meio de notícias, leitura, está despontando como um grande centro de educação, com a popularização do EAD, dos cursinhos online, etc.

E tudo isso demanda conexão constante. Estamos meio que indo na contramão de uma tendência mundial. Isso pode ser prejudicial não só para o consumidor final, mas também para setores comerciais, empresários e até para o desenvolvimento tecnológico do país.

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Jean Prado

Jean Prado

Ex-autor

Jean Prado é jornalista de tecnologia e conta com certificados nas áreas de Ciência de Dados, Python e Ciências Políticas. É especialista em análise e visualização de dados, e foi autor do Tecnoblog entre 2015 e 2018. Atualmente integra a equipe do Greenpeace Brasil.

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