Credores podem bloquear celular de devedores no Brasil? Conheça seus direitos
Bloqueio de celular de devedores de empresa parceira do Serasa acende alerta: afinal, a prática é permitida no Brasil?
Bloqueio de celular de devedores de empresa parceira do Serasa acende alerta: afinal, a prática é permitida no Brasil?
No dia 4 de fevereiro, o MPDFT (Ministério Público do Distrito Federal e Territórios) abriu uma investigação contra a Serasa e a firma de empréstimos SuperSim. Segundo promotores, as empresas bloqueiam celulares de quem para de pagar parcelas de empréstimos, após contratar o serviço. Mas o bloqueio de celular por inadimplência é permitido no Brasil? Quem pode suspender as funções do dispositivo de um devedor? O Tecnoblog consultou especialistas, a Anatel, o MPDFT e conta nesta reportagem se a medida tem respaldo legal.
O caso começou quando o MPDFT abri um inquérito civil público para investigar a conduta da Serasa e do SuperSim. A Prodecon indicou que o Serasa poderia estar bloqueando celulares de clientes que passam a dever prestações de devedores de clientes do seu marketplace de crédito, o eCred.
Apesar de especialistas ouvidos pela reportagem não terem conhecimento de um caso de bloqueio desse tipo, por aplicativo, no Brasil, a medida não é novidade fora do país.
Nos Estados Unidos, um app chamado “Device Lock Controler” deu as caras na Google Play Store em novembro de 2020. A função do app, conforme a descrição na loja virtual, era de abrir o “funcionamento do dispositivo a empresas de crédito”. Caso o aparelho fosse bloqueado, o acesso a recursos básicos, como ligações de emergência e acesso às configurações, ainda seria permitidos.
“Esse recurso é comum em empresas que dão celulares aos funcionários. Se o aparelho tiver informações confidenciais e for roubado, por exemplo, esse tipo de app ajuda a bloquear acesso de qualquer um ao produto”, explica Ricardo de Carvalho Destro, professor de Engenharia Elétrica da FEI.
O Device Lock Controler usa uma interface chamada DeviceAdminService API — ou API de Serviço de Administrador de Dispositivo. Os celulares distribuídos por empresas vêm com essa interface pré-carregada para que o funcionário não consiga desligar o recurso de bloqueio.
Destro explica um pouco melhor como a API pode controlar o dispositivo:
“Cada equipamento possui um comando diferente para acessar funções e ler dados, como sinal 4G. Para os desenvolvedores não se preocuparem com cada modelo de celular, o sistema operacional “abstrai” os recursos físicos dos dispositivos de forma única, para que todos usem a API do OS, como no caso do Android. Dentro desses recursos, você tem APIs que bloqueiam a execução de aplicativos. É uma feature do próprio sistema operacional, e que permite que o app trave o aparelho.”
Ele explica que, no sistema operacional do Google, essas APIs de bloqueio estão mais abertas aos desenvolvedores do que no iOS, da Apple. Ao mesmo tempo, elas são mais fáceis de serem “exploradas” por programadores.
Ao site XDA Developers, o Google disse na época que desenvolveu o app junto a uma operadora de rede móvel queniana. Mas a big tech também explicou que o Device Lock Controller não deveria estar listado na Google Play Store — um erro fez com que ele aparecesse.
O app da SuperSim, por coincidência, não é encontrado na loja de aplicativos do Google. Ele pode ser baixado por meio da prática de side-loading, quando o usuário faz o download de um app de um desenvolvedor terceiro por fontes alternativas em seu celular.
Em uma página com mais detalhes sobre o app, a SuperSim diz que oferece crédito principalmente para as classes C e D, inclusive àqueles que estão negativados na Serasa. A credora diz que a Play Store “ainda não está preparada para regular funcionalidades de empréstimo de garantia”.
Portanto, a SuperSim oferece seu app usando servidores internos. Antes de baixar o programa, o cliente deve fornecer dados pessoais ao site da SuperSim, como endereço, conta bancária, nome completo, CPF e e-mail.
Em seguida, ele deve concordar com o contrato. Depois, a empresa concede uma “pré-aprovação” do empréstimo, e o usuário pode baixar o aplicativo da empresa. Para isso, é necessário permitir que o navegador “baixe arquivos desconhecidos”. O app da SuperSim é compatível apenas com celulares Samsung, Motorola, LG e Xiaomi com as versões do Android 7, 8, 9, 10 e 11.
Em um vídeo, a SuperSim avisa ao usuário que o app pede a permissão para de acesso para:
Procurada pelo Tecnoblog, a Anatel diz que só faz o bloqueio de celular quando os aparelhos foram objeto de roubo, furto ou extravio. A agência também intervêm remotamente nos casos em que os dispositivos em questão não foram homologados pela agência ou foram adulterados. “Ressalte-se que nesses casos, o bloqueio do celular é feito na rede de telefonia móvel, ou seja, os celulares deixam de se conectar à rede”, disse o órgão.
“Neste sentido, o bloqueio de celulares na rede por motivos de inadimplência, por exemplo, não é permitido pela regulamentação da Anatel”, continua a nota enviada à reportagem.
Nas regras da Anatel, consta que pode haver interferência em equipamentos por parte das empresas de telefonia móvel, mas mediante à violação de contrato firmado com o cliente — o que inclui o não pagamento — ou violação do regulamento da agência. Mas essa norma vale apenas para operadoras, como TIM, Claro e Vivo, e não empresas de crédito ou birôs, como SuperSim ou Serasa.
A Anatel diz que não regulamenta aplicações instaladas em celulares. Do ponto de vista da instituição, a atuação de Serasa e SuperSim devem ser analisadas “à luz da legislação referente aos direitos consumeristas.”
A agência federal que regula o setor de telecom foi comunicada sobre a abertura de inquérito pelo Ministério Público do DF, que exigiu da agência o contrato padrão para permitir o bloqueio de celulares.
Eduardo Ramires, advogado especialista em telecomunicações e sócio-fundador do Manesco Advogados, prevê que a intervenção no celulares de devedores de empréstimo viola o direito do consumidor, à privacidade, e o regulamento de serviços de telefonia. Ao Tecnoblog, ele disse:
“A possibilidade de suspensão dos serviços de telefonia está limitada às situações de inadimplência direta do pagamento pelos próprios serviços. Ninguém tem o direito de promover um bloqueio dessa natureza aos seus devedores. Se isso aconteceu viola, inclusive, a regulamentação dos serviços, e a prestadora será punida.”
A Serasa possui uma plataforma que serve como um marketplace de crédito: o eCred. O site é usado por empresas do setor financeiro para oferecerem produtos, como é o caso da SuperSim.
A firma oferece um empréstimo com garantia de celular, que pode ser acessado por meio do aplicativo do Serasa ou por meio da página do eCred na internet. Entretanto, na mesma página, escondida na sessão de perguntas e debaixo da aba “O que acontece se eu atrasar uma parcela do meu empréstimo?”, está a informação de que pode haver bloqueio total do aparelho em casos de inadimplência.
Nos Termos e Condições disponíveis no aplicativo da Serasa, na sessão específica sobre o eCred, não há menção sobre o bloqueio de celulares efetuado por terceiros, caso o usuário deixe de pagar parcelas. Não fica claro se o app do Serasa faz esse tipo de intervenção; a empresa nega que isso ocorra.
No caso da SuperSim, o bloqueio do aparelho é mencionado no contrato do empréstimo com celular como garantia. O acesso ao documento vem depois do cliente fornecer dados como renda, endereço, e-mail e CPF. Consta no documento (que não pode ser baixado), assinado por um clique:
“A credora utilizará a garantia decorrente da tecnologia SuperSim, devidamente aceita pelo emitente através da concordância dos Termos de Uso, que permite o bloqueio de alguns recursos do aparelho celular smartphone do emitente até o pagamento da parcela devida ou quitação integral da dívida”.
Ocorre que os Termos e Condições de Uso da SuperSim sobre o empréstimo com garantia de celular não mencionam sequer as palavras “bloqueio” ou “suspensão”. Também não menciona quais são as funcionalidades que podem ser bloqueadas no aparelho — diferentemente da página da Serasa, que menciona a limitação do aparelho “apenas a ligações de emergência”.
A advogada de direito digital Cinthya Imano Vicente Ribeiro comenta que não existe nenhum amparo legal para que o SuperSim bloqueie, por meio do Serasa, o telefone de quem para de pagar parcelas de empréstimo. A postura da empresa violaria a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), além do Código de Defesa do Consumidor (CDC).
“Todo o titular de dados tem um livre acesso de como a empresa está tratando seus dados. Nesse caso, o titular é o devedor, que será surpreendido com o bloqueio da linha de telefone dele por uma parcela em atraso. Não há transparência de como o bloqueio é feito com base nos dados.”
Cinthya Imano Vicente Ribeiro, do Almeida Prado & Hoffmann Advogados Associados
Ao analisar o contrato da SuperSim, a advogada afirma que não há respaldo legal que permita o bloqueio, porque as cláusulas são abusivas. Segundo ela, não há detalhes sobre o momento específico em que o bloqueio ou desbloqueio ocorrem.
“O fato de mencionar o bloqueio não significa que seja possível acontecer. Pode, se muito, obedecer minimamente o direito de informação do consumidor, mas não torna legal”, disse Ribeiro. O documento ainda viola o princípio de autodeterminação informativa da LGPD.
A advogada comenta que o usuário deveria ser informado sobre a intervenção em seu aparelho por meio de notificações push, tanto pela SuperSim quanto pela Serasa, que colocam essa informação na seção de perguntas.
Em relação ao caso específico da Serasa e SuperSim, o promotor de Justiça Paulo Roberto Bincheski, à frente do inquérito, afirmou que a Serasa pode ser responsabilizada legalmente por oferecer o serviço da SuperSim no marketplace do eCred.
“O fato de a Serasa atuar como um marketplace não a isenta de responsabilidade, porque é a empresa que inclusive anunciou essa funcionalidade no mercado financeiro”, comentou Bincheski. Ele continua: “A Serasa tem interesse financeiro direto nesse tipo de aplicativo”.
O birô de crédito pode ser enquadrado nos Artigos 5, 7 e 34 do Código de Defesa do Consumidor. Os dois últimos dizem respeito à responsabilidade do fornecedor do serviço em responder solidariamente pelos atos de empresas que agem como representantes, mesmo quando há mais de uma empresa envolvida.
Com exclusividade, o Tecnoblog descobriu que a Senacon (Secretaria Nacional do Consumidor), que faz parte do Ministério da Justiça, irá notificar Serasa e SuperSim, investigadas pelo MPDFT.
Procurada pela reportagem, a SuperSim mencionou que:
“A SuperSim informa que até o momento não foi notificada oficialmente pelo MPDFT e que seu modelo de negócio tem autorização dos devidos órgãos reguladores, bem como embasamento legal na legislação brasileira […] A companhia reforça ainda que o processo é transparente, validado pelo próprio usuário que realiza o aceite do contrato, bem como suas condições, via aplicativo. A SuperSim reitera que está à disposição das autoridades para prestar qualquer esclarecimento que se fizer necessário.”
Já a Serasa declarou ao Tecnoblog:
“A Serasa reforça que o e-Cred é apenas uma plataforma (marketplace) que aproxima consumidores a empresas que concedem crédito em diversas modalidades, como empréstimo pessoal e cartão de crédito. Ainda, a Serasa volta a esclarecer que não é a responsável pela concessão de crédito, tampouco pela operação de aplicativos de outras empresas que eventualmente realizem bloqueio de celulares. A contratação da operação ocorre diretamente entre consumidor e concedente de crédito, e o aplicativo da Serasa não realiza qualquer tipo de bloqueio em dispositivos móveis.”
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