Tudo o que deu errado no Uber em apenas seis meses

A situação da empresa que revolucionou o mercado de transporte não é boa em nenhum lugar do mundo

Paulo Higa
Por
• Atualizado há 1 ano e 5 meses
Travis Kalanick

O Uber nunca esteve tão presente na mídia quanto nesta primeira metade de 2017. Mas não foi por causa das expansões em novas cidades, investimentos em tecnologias inovadoras ou mesmo brigas com taxistas. A empresa avaliada em US$ 69 bilhões se envolveu em uma série de polêmicas que culminaram na demissão de executivos do alto escalão e até na saída do presidente.

Mas como o Uber chegou até aqui? As confusões vão de práticas de mercado no mínimo questionáveis a acusações de assédio sexual no ambiente de trabalho. Vamos relembrar tudo o que deu errado na empresa em apenas seis meses (na verdade, cinco meses e meio). Sente-se, porque o texto é longo.

#DeleteUber: 200 mil contas excluídas em apenas uma semana

A empresa já começou o ano se envolvendo em política. Em janeiro, o Uber desativou manualmente a tarifa dinâmica no aeroporto John F. Kennedy, em Nova York, durante protestos contra o decreto de Trump que restringia a entrada de imigrantes de países islâmicos. A atitude foi vista como uma afronta à manifestação. Para piorar, o CEO Travis Kalanick era membro do conselho de administração do presidente americano.

Como resultado, 200 mil usuários deletaram suas contas do Uber em apenas uma semana. As solicitações foram tão numerosas que a empresa teve que desenvolver uma ferramenta para automatizar o processo; até então, os funcionários precisavam excluir cada conta manualmente.

Reforço para conter assaltos e sequestros no Brasil

Nem todo mundo tem cartão de crédito, e o Uber decidiu começar a aceitar pagamento em dinheiro em cidades brasileiras para aumentar sua fatia de mercado — o que realmente aconteceu. Eles só não esperavam que o número de assaltos e sequestros fosse subir tanto. Com medo, motoristas passaram a evitar corridas em dinheiro quando solicitadas por usuários recém-cadastrados ou em lugares de maior risco.

Para conter os bandidos, o Uber passou a exigir que os usuários informassem o CPF caso quisessem solicitar uma corrida com pagamento em dinheiro e não tivessem um cartão de crédito cadastrado. O documento informado pelo passageiro é validado no banco de dados da Receita Federal.

Os motoristas estão cada vez mais insatisfeitos

Além dos assaltos e sequestros, os motoristas estão se voltando contra o Uber devido aos baixos rendimentos. As modalidades econômicas chegam a custar metade do preço do táxi comum, e os motoristas reclamam que os ganhos mal pagam o combustível, manutenção e depreciação do automóvel. Ainda assim, o Uber chega a ficar com 30% do valor de todas as corridas.

Como se não bastasse, o Uber calculou errado os impostos e embolsou indevidamente US$ 45 milhões de motoristas de Nova York, uma média de US$ 900 por parceiro. O Uber percebeu o erro e reembolsou os motoristas em maio. Mas não foi a primeira vez que isso aconteceu: dois meses antes, a empresa descobriu que pagou milhões de dólares a menos para motoristas da Filadélfia.

E alguns usam o jeitinho brasileiro para ganhar dinheiro

Motoristas vêm utilizando artimanhas para garantir rendimentos maiores. Uma delas é negociar a tarifa por fora em locais de alta demanda, como em casas noturnas. Outra é aceitar uma viagem e estacionar a alguns quarteirões de distância; o cliente acaba desistindo da corrida e o motorista ganha a taxa de cancelamento, de R$ 4 a R$ 9.

No aeroporto de Guarulhos, onde há uma fila de espera virtual, existe a técnica de ligar para o passageiro e descobrir o destino da viagem; se a corrida for curta, o usuário é induzido a cancelar e o motorista volta para a mesma posição na fila. Outros chegaram a utilizar o Fake GPS para burlar a localização do smartphone e simular que estavam na região do aeroporto para entrar na fila, mas o Uber já bloqueou a trapaça.

Com a expansão, os usuários notaram queda na qualidade (e na segurança)

Com a rápida expansão no Brasil e a inclusão de motoristas sem critérios rigorosos, os passageiros começaram a notar a queda na qualidade. Antes com carros novos e espaçosos, mesmo na categoria mais econômica, os usuários passaram a ter que aceitar veículos mais antigos e apertados, como Uno e Palio, que no começo eram proibidos. Mimos que ajudaram a popularizar o Uber, como balinha e água, também cessaram.

O Uber acabou lançando uma modalidade intermediária entre uberX e UberBlack, chamada de UberSelect, que aceita somente carros selecionados fabricados a partir de 2012. Além disso, o Uber testa no mercado brasileiro um serviço chamado Uber VIP, que disponibiliza os motoristas com as melhores avaliações e veículos para os usuários mais frequentes.

Foto: EPTV

E o relaxamento no filtro para se expandir rapidamente interferiu na verificação de segurança dos motoristas, que em tese precisam enviar um atestado de antecedentes criminais ao Uber para operar. No entanto, o Uber já aceitou um motorista com passagem na polícia por receptação de veículo e outro por homicídio e roubo; este último foi preso enquanto roubava uma residência na zona sul de São Paulo.

O CEO resolveu bater boca com um motorista

Dada a insatisfação dos parceiros, era esperado que o CEO Travis Kalanick recebesse alguma reclamação, afinal, ele também utiliza o Uber para se locomover. No entanto, em vez de ouvir o relato de um motorista descontente com os baixos rendimentos, ele decidiu bater boca. O que o executivo não esperava é que a conversa estivesse sendo filmada.

O vídeo acabou viralizando na internet e Kalanick teve que pedir desculpas publicamente no blog da empresa. Na nota, o CEO reconhecia ter tratado o motorista com desrespeito e afirmava que “envergonhado” era pouco para o que estava sentindo.

Multa pelo Procon por cobrança indevida

Em março, o Procon-SP multou o Uber em R$ 13,6 mil por não restituir corretamente os clientes por serviços cobrados indevidamente e não disponibilizar os dados de identificação da empresa de forma adequada, descumprindo a legislação brasileira. De acordo com o Procon-SP, “a empresa cobrou por serviços que não foram prestados, exigindo dos consumidores vantagens manifestamente excessivas”.

Softwares para despistar autoridades e espionar concorrentes

O Uber foi pego com pelo menos dois softwares utilizados para finalidades no mínimo questionáveis.

Um é o Greyball, que tenta identificar autoridades cadastradas no aplicativo, como policiais e agentes de trânsito. O objetivo era despistar a fiscalização em cidades que demonstravam resistência contra o Uber; no entanto, isso pode ser considerado um desvio ético ou até uma atividade criminosa. Depois da descoberta, o Uber decidiu rever o sistema.

Lyft app

O outro é o Hell, que servia para espionar o maior concorrente nos Estados Unidos. O Uber criou contas falsas no Lyft para descobrir dados de localização de motoristas e deduzir quais trabalhavam para os dois serviços. Depois, eles recebiam incentivos financeiros para prestar serviços exclusivamente ao Uber. O Hell foi descontinuado porque se tornou inviável à medida que o Lyft se expandiu para várias cidades.

Acusado de roubar tecnologia do Google

A tecnologia de carros autônomos, uma das maiores apostas do Uber para os próximos anos, está em risco por causa de um processo do Google. A empresa de transporte é acusada de ter contratado um ex-funcionário do buscador que copiou indevidamente 14 mil documentos sigilosos.

O funcionário, Anthony Levandowski, recebeu mais de US$ 250 milhões em ações do Uber apenas um dia depois de sair do Google. Ele chegou a ser contratado para liderar a divisão de carros autônomos do Uber. Em meio à confusão, acabou sendo demitido no final de maio por não colaborar com as investigações.

E os carros autônomos do Uber não andaram muito bem: em março, um veículo virou de lado após ser atingido por outro que fazia uma curva à esquerda. Ninguém ficou gravemente ferido, mas o projeto de carros autônomos foi temporariamente suspenso pela empresa.

Assédio sexual dentro da empresa

A denúncia de uma ex-engenheira de software do Uber, Susan Fowler, foi seguida por uma chuva de relatos de assédio sexual dentro da empresa. Fowler diz que, do primeiro ao último dia de trabalho na companhia, um gerente a abordava com a intenção de ter relações sexuais. Ela procurou o RH diversas vezes, mas não obteve apoio em nenhuma delas.

O CEO Travis Kalanick inicialmente tentou amenizar o problema, dizendo que a empresa se esforçava para oferecer um ambiente de trabalho adequado para todos. Depois do assunto ganhar o noticiário, o Uber abriu uma investigação para relatos de assédio sexual. Pelo menos 20 funcionários, que não tiveram seus nomes identificados, foram demitidos.

Demissões de executivos e gente pedindo para sair

Com tantas confusões, muitos funcionários foram demitidos ou decidiram abandonar a empresa. Dá para fazer uma lista bem extensa:

O CEO Travis Kalanick, nesta semana, se afastou do cargo por tempo indeterminado. O executivo, no entanto, diz que a decisão de se afastar da companhia tem unicamente motivações pessoais, já que sua mãe faleceu em um acidente de barco e seu pai permanece internado em estado grave. Ele afirma que está trabalhando para construir um “Uber 2.0”, mas que só conseguirá fazer isso se trabalhar também um “Travis 2.0”.

Atualização em 21 de junho. Após pressões de cinco dos principais investidores da startup, Kalanick renunciou ao cargo de CEO em definitivo. O executivo continuará ocupando o conselho de diretores da empresa e ainda detém a maioria das ações com direito a voto.

Pode ficar pior no Brasil

Tramitam na Câmara dos Deputados duas emendas ao projeto de lei 5.587/2016 que inviabilizam o funcionamento do Uber e outros aplicativos de transporte no Brasil. São Paulo é a segunda cidade com mais corridas de Uber no mundo, depois da Cidade do México.

Uma das emendas define que o transporte por individual por meio de aplicativos deve ser autorizado pela prefeitura de cada município, assim como acontece com os táxis. Outra estabelece que os carros usados no atendimento devem ter idade máxima definida e precisarão ser devidamente registrados para identificação por placa vermelha, como os táxis.

E os concorrentes estão vindo com força

Se o Uber passa por um momento ruim, os concorrentes estão comemorando a época de vacas gordas. O Cabify recebeu US$ 99.999.994 em investimentos (também conhecido como US$ 100 milhões) para derrubar o Uber na América Latina. A empresa, de origem espanhola, planeja levantar US$ 200 milhões para conquistar mercado especificamente no Brasil.

A brasileira 99 recebeu US$ 200 milhões, sendo US$ 100 milhões da japonesa SoftBank e outros US$ 100 milhões da chinesa Didi Chuxing. A Didi é a maior rival do Uber, tendo investimentos nos principais concorrentes, como a 99, a americana Lyft, a indiana Ola e a singapurense Grab. Ela também comprou a divisão do Uber na China, essencialmente acabando com a empresa de Kalanick no país mais populoso do mundo.

Relacionados

Escrito por

Paulo Higa

Paulo Higa

Ex-editor executivo

Paulo Higa é jornalista com MBA em Gestão pela FGV e uma década de experiência na cobertura de tecnologia. No Tecnoblog, atuou como editor-executivo e head de operações entre 2012 e 2023. Viajou para mais de 10 países para acompanhar eventos da indústria e já publicou 400 reviews de celulares, TVs e computadores. Foi coapresentador do Tecnocast e usa a desculpa de ser maratonista para testar wearables que ainda nem chegaram ao Brasil.

Temas populares